No passado fim-de-semana, na Escola Tecnológica e Profissional da Zona do Pinhal, um pequeno grupo arregaçou as mangas para conhecer com detalhe o segredo da confecção do bucho recheado de Pedrógão Grande, numa iniciativa da Confraria do Bucho Recheado de Pedrogão Grande, em colaboração com o município.
Esta é uma das muitas confrarias gastronómicas do distrito de Leiria, cujo trabalho tem dado frutos, na preservação e na promoção de produtos endógenos, com efeitos na dinamização de restaurantes e na captação de turistas, na salvaguarda e expansão de produtores, mas também na aproximação e no convívio das comunidades, unidas em torno de sabores e vivências seculares.
Atrair os mais jovens
Idalina Cunha, professora de Matemática aposentada, é a chanceler-mor da [LER_MAIS]Confraria do Bucho Recheado de Pedrogão Grande, constituída em 2016, com o objectivo de promover, divulgar e certificar este produto. Explica que a confraria ganhou especial impulso desde o início deste ano e conta com mais de 50 elementos, entre confrades adolescentes e octogenários.
A certificação do bucho ainda não se concretizou, mas, até lá, a associação tem aproveitado todas as oportunidades para divulgar este produto, participando nas grandes reuniões de confrarias gastronómicas de vários pontos do País (os denominados capítulos).
Festivais como aquele que se realizou no passado fim-semana, em Pedrógão Grande, permitem resgatar receitas antigas e partilhá-las com as gerações mais jovens, e os workshops são um veículo muito importante, entende a chanceler-mor.
Nesta iguaria é utilizado o estômago do porco, recheado com vários tipos de carne do mesmo, aos quais se juntam pedaços de chouriço, presunto e algum pão, podendo adicionar-se ainda carne de vaca, frango ou cabrito, explica Idalina Cunha. A par destas receitas tradicionais, têm surgido inovações como as trouxinhas ou os pastéis com recheio do bucho, sempre com a mesma intenção de promover o produto e dinamizar a economia local.
Daniela Pedro preside a Confraria do Chícharo, de Alvaiázere, que tem trabalhado na divulgação desta leguminosa, bem como daquele território. “Para que não se esqueçam as nossas raízes e para que se passe, de geração em geração, a nossa gastronomia e cultura.” Objectivos que a confraria tem vindo a conquistar, ou não fosse a sua dirigente uma jovem de 37 anos e o conjunto de 80 confrades constituído por gerações heterogéneas, dos 20 aos 80 anos.
Fruto do empenho da confraria, o chícharo “renasceu com uma roupagem diferente”, apresentando-se não apenas em receitas tradicionais, mas também em produtos inovadores, como doces e licores, exemplifica.
Espírito de irmandade
Sobre dinamismo fala também Luís Rosa, grão-mestre da Confraria do Frango na Púcara, constituída em 2020, em Alcobaça. “Da receita original fazia parte a perdiz. Mas como o produto se tornou raro e caro, foi sendo substituído pelo frango na púcara”, apressa-se a explicar Luís Rosa. E é este o produto que a sua confraria tem vindo a defender arduamente. Com uma vintena de confrades, o grupo tem-se repartido regularmente por eventos em todo o País.
“Em 2022, participámos em 13 capítulos de outras confrarias e fizemos a nossa cerimónia pública de entronização dia 12 de Novembro, em Alcobaça, e foi o nosso primeiro capítulo. Este ano, até à data, já participamos em 22 eventos”, contabiliza o grão-mestre.
Mas afinal o que é isso de ser confrade? Luís Rosa conta que as confrarias gastronómicas bebem do espírito das confrarias religiosas. Mantém-se viva a relação de uma irmandade, bem como a defesa de um interesse comum, neste caso de um prato, que tem valor social, cultura e económico. A hierarquia segundo a qual se organizam as confrarias é uma das características destas associações, bem como a sua indumentária (geralmente constituída por capa, chapéu ou boina, símbolo colocado num escapulário, etc.), mas é a irmandade que melhor as define, realça Luís Rosa.
A globalização acarreta o risco de fazer desaparecer ou desvirtuar produtos e receitas tradicionais de um local ou região e cabe a estes “irmãos” defender a sua manutenção. Daí o trabalho que muitas confrarias têm feito na certificação destes pratos. Uma luta à qual se têm juntado muitos municípios, valoriza o grão-mestre. “Com perseverança, o movimento confrádico tem vindo a organizar-se” e, entende Luís Rosa, o Estado deve acompanhar mais estes grupos que “mexem com a hotelaria, a restauração, o turismo, a exportação de vários produtos, incluindo vinhos”.
Rui Miranda é o actual grão- mestre da Confraria do Queijo do Rabaçal, instituição com mais de duas décadas, nascida para divulgar este produto, bem como as Terras de Sicó. Com o seu contributo e com o empenho dos produtores, o queijo já se tornou num produto DOP (Denominação de Origem Protegida). No entanto, observa Rui Miranda, o problema está agora em conseguir assegurar os pastos, e por sua vez os leites, com os quais são feitos estes queijos. Outro desafio passa também por continuar a captar o interesse das novas gerações, de forma a dar continuidade a esta produção artesanal.
Distinção europeia
Armínio Azevedo é o mordomo-mor da Confraria Gastronómica Pinhal do Rei e da Morcela de Arroz, constituída em 2008 com o intuito de promover os produtos da zona de Leiria, Batalha e Ourém, entre os quais a morcela de arroz. São cerca de 50 os confrades desta associação que têm trabalhado na divulgação destes produtos tradicionais, um trajecto bem-sucedido também além-fronteiras.
Exemplo disso foi a distinção recebida em 2019 pelo Conselho Europeu de Confrarias Gastronómicas, que destacou a morcela de arroz com o primeiro prémio entre um conjunto de 40 produtos artesanais concorrentes. A pandemia e a crise vieram reduzir o número de participações em capítulos, mas não esmoreceu a vontade de certificar a morcela de arroz.
O chef Rui Lopes, também confrade, integra a equipa que está a trabalhar no projecto É de Leiria, dinamizado pelo município, salienta Armínio Azevedo.
Espelho de dias difíceis
Isaac Pedrosa é o presidente da Confraria do Carneiro e das Sopas do Verde, nascida há um ano, na Memória (Leiria), que surgiu com a vontade de defender o prato e dinamizar a aldeia. “A nossa terra está um pouco apagada, com população muito idosa, e estamos a mobilizar os jovens para dignificar as nossas tradições”, nota Isaac, carinhosamente intitulado de carneiro-mor.
A confraria recupera o prato tradicional do carneiro guisado e ainda as sopas verdes, feitas a partir das vísceras e sangue do carneiro, assim chamadas por serem servidas logo a seguir a matança, e assim aproveitar todo o animal. São pratos em desuso e que já não são bem vistos, sobretudo pelas novas gerações, e cujas receitas é preciso manter, observa o presidente.
Além do carneiro, a confraria também tem resgatado as mexudas (caldo da cozedura de couves e feijões, engrossado com farinha de milho), ou os ervanços (sopas e saladas com grão-de-bico), confecções que remetem para tempos difíceis, onde era necessária criatividade para alimentar as famílias.
O prato defendido pela Confraria da Sopa do Vidreiro, da Marinha Grande, também está associado a épocas difíceis, quando os vidreiros, sujeitos a elevadas temperaturas, à boca dos fornos, se alimentavam diariamente com uma sopa capaz de repor os sais minerais que perdiam em grande quantidade.
Esta sopa, à base de bacalhau salgado, batata e ovo escalfado, é hoje representada por cerca de 50 confrades, conta Octávio Rodrigues, grão-escriba desta associação. “É uma sopa para saudosos”, nota Octávio Rodrigues.