Devoção, dedicação, amor e ternura. São quatro palavras que não resumem tudo o que sentem e oferecem os cuidadores informais. Incapazes de deixarem os seus entes queridos numa instituição, mesmo que seja por um breve período de férias, os cuidadores com quem o JORNAL DE LEIRIA falou são o espelho das centenas que existem por todo o País e a quem os apoios não chegam, muitas vezes, por falta de informação.
Para eles, a prioridade é o outro. O outro está primeiro, o outro importa acima de tudo. Só em limite assumem alguma dificuldade, pois consideram-se quase super-mulheres (nestes casos todas do sexo feminino) onde o impossível não existe.
Há 38 anos que Aida Gomes mima o seu filho. Mimar, porque é o amor que lhe dedica diariamente quase 24 horas por dia, que ajuda um jovem de 39 anos, cego e com um atraso cognitivo e no desenvolvimento.
“Deixei de trabalhar para ser mãe e cuidar dele. Mas não me arrependo de nada. Era incapaz de colocar o meu filho numa instituição”, assume Aida Gomes, residente em Leiria, 64 anos, que tem um filho mais novo, sem qualquer dependência.
Vive para ele e só para ele, como afirma. “Eu não existo. Só quando preciso de ir ao médico. Não existe nada mais à volta. Temos o cordão umbilical muito preso um ao outro. Pode até nem ser bom, mas não dá para ser de outra maneira”, diz.
A preocupação começa a surgir à medida que a idade avança. Aida Gomes pergunta-se muitas vezes: “o que será dele se eu lhe faltar?”. Quando refere isso as lágrimas enchem-lhe os olhos esverdeados, que nem uma vida de luta e sofrimento lhe retiram o sorriso, a meiguice e a simpatia.
Revolta teve desde o momento em que, com cerca de um ano, o jovem evidenciou problemas de visão e de desenvolvimento. “Ainda hoje me pergunto: porquê a mim? Se Deus não quer mal a ninguém, por que é que isto aconteceu, será que fiz algo de errado?” As perguntas ficam sem resposta, mas a fé de uma católica não praticante não sai totalmente abalada e tem muitos momentos, sobretudo, durante as crises do filho, em que pede protecção divina e parece ser atendida.
Quando o jantar fora é em casa
Elsa Fiteiro, 47 anos, é também cuidadora informal por devoção e amor. Há quase 12 anos que é filha, enfermeira, psicóloga e tudo o mais que for necessário para tratar do seu pai, que passou a estar dependente quando fracturou a coluna, com cerca de 70 anos. Nessa altura, tinha a seu cargo a sua mãe e já cuidava de um tio de 83 anos, que tinha sofrido um acidente vascular cerebral. Cabeleireira de profissão, aos 35 anos e com um filho de 5 anos não equacionou colocar o pai num lar.
Entretanto, foi diagnosticado um carcinoma num pulmão à mãe. Reorganizou toda a sua vida para poder estar presente em várias frentes. “Fechei o salão por oito dias, fazia viagens diárias a Lisboa, com o meu pai a querer fugir, já com o diagnóstico de Alzheimer”, conta, realçando a colaboração do marido, que faltava ao trabalho para cuidar do sogro.
A mãe recuperou, mas uma pneumonia levou-a para o hospital de Leiria em tempos de Covid-19, onde viria a falecer. O sofrimento deixa marcas no rosto de Elsa Fiteiro, que demonstra, contudo, ser uma mulher de armas e que chega a todo o lado, mesmo tendo momentos mais frágeis.
A profissão de cabeleireira é exercida pontualmente e por marcação, de modo a gerir a atenção que o pai precisa. Mas não deixa de embelezar os idosos dos lares, um dos trabalhos que mais a recompensa. “Adoro o tempo que passo com eles, as conversas e estar a ouvi-los. Eles precisam tanto dessa atenção”, realça.
Além de profissional, é mãe, mulher e dona de casa. “Quem é cuidador nunca pensa que não será capaz. Não há impossíveis. Não sou filha única, mas sou a única cuidadora do meu pai. Não tem problema. Felizmente tenho apoio do meu marido.” A doença de Alzheimer do pai, hoje com 81 anos, impede-o de reconhecer a filha. No entanto, a gratidão que lhe transmite pelo carinho, afecto e todo o cuidado que Elsa Fiteiro lhe presta, basta-lhe.
O filho, agora com 16 anos, compreende toda a dedicação ao avô e até já colabora. Jantares fora a três não existem, mas há que desdramatizar. “Vem o restaurante a casa”, brinca Elsa Fiteiro, referindo que divide com o marido os tempos de lazer com o filho.
“Não dá para estarmos os três, mas fazemos programas a dois alternadamente”, revela, ao afirmar que o seu pequeno escape são as aulas de catequese que continua a dar. E o tempo parece esticar. “Sei que posso prejudicar o meu marido e o meu filho, mas não consigo imaginar o meu pai num lar. Foi uma opção que fiz, mas não me arrependo de nada. É reconfortante a gratidão de retorno”.
“Não é uma obrigação”
Aos 39 anos, Fernanda Ferreira viu a sua vida mudar, depois de um acidente de viação. Um choque frontal levou à amputação de uma perna do marido. Ela ia no carro e sofreu algumas mazelas. Na altura, o filho, com 18 anos, foi o cuidador do momento.
Depois, a dedicação ao marido passou a ser de Fernanda, que o ajudava em tudo o que ele não conseguia fazer. Aos 74 anos o aparecimento lento de demência tende a piorar a situação. A cuidadora, da mesma idade, assume que já não tem a força física e mental da época e a condição física e mental do marido também está a deteriorar- se. “Não é uma obrigação, é uma devoção. A vida a dois é para o bem e para o mal. Se fosse o inverso também não gostaria que me abandonassem. Poderia ter vivido uma vida diferente, mas nunca quis. Não vejo a minha vida de outra maneira.”
E a decisão de Fernanda Ferreira não teve a ver com qualquer pena, até porque sempre foi uma mulher à frente da sua geração. Nunca foi submissa e mostrou uma determinação bem vincada em todas as suas posições. Até quando o marido a chamou a atenção por frequentar um café ‘menos recomendado’ pelas raparigas que lá iam. “Nunca deixei de o fazer.”
Além do marido, Fernanda também cuidou da mãe, da sogra e de uma tia. “Sempre assumi que era capaz de fazer tudo e não precisava de ajuda. Uma enfermeira avisou-me muitas vezes que qualquer dia ‘rebentava’”, revela. E esse dia chegou, obrigando-a a ser medicada para ultrapassar os momentos de angústia que começava a sentir.
Portas fechadas
As principais dificuldades que estas cuidadoras sempre enfrentaram foram o fecho de portas de quem teria a obrigação de as ajudar. Concordam que fazem tudo por amor ao próximo, mas substituem-se ao Estado. Se não fossem cuidadoras, estas pessoas dependentes teriam de estar institucionalizadas ou possuírem cuidados diários pagos pelo Estado.
Por isso, não compreendem a falta de respostas que têm e, sobretudo, a omissão de informação, a qual só conseguem obter porque ‘alguém disse’ ou pesquisaram muito. “Uma pessoa numa instituição sai muito mais caro ao Estado. Tenho o estatuto de cuidadora informal e recebo cerca de 200 euros. Como é que poderia sobreviver com esse dinheiro e pagar todos os cuidados e terapias ao meu filho? Mesmo que o Estado nos desse um valor de 500 euros ainda estaria a poupar”, critica Aida Gomes.
Elsa Fiteiro nem direito a subsídio como cuidadora tem. A razão é simples: trabalha. Mesmo que sejam raras as vezes. “A minha vida gira à volta do meu pai. Cuido dele a toda a hora, mas como tenho um filho e preciso de comer e pagar despesas tenho de trabalhar. Assim, não tenho direito ao estatuto”, lamenta Elsa, lembrando que não sobreviveria com os 500 euros do pai para pagar tudo o que necessita e ainda suportar as despesas com o filho.
Pouca informação
“Só o transporte de ambulância são 30 euros para cada lado. Se tiver duas consultas num mês, pago 120 euros. Tive de me mexer para ter apoio, mas é tudo muito difícil e ninguém dá informação. Por vezes, não conseguimos o que temos direito porque simplesmente dizem que não temos”, denuncia.
Aida Gomes concorda e afirma que cada ida à Segurança Social resulta quase sempre em dificuldades de comunicação. “Nunca sabem responder nem esclarecer nada e nem procuram saber se não insistirmos”, diz, recordando que quando pediu o estatuto de cuidadora informal esteve cerca de seis meses sem resposta. Quando procurou saber junto dos serviços a razão, percebeu que faltava um documento. “Não foram capazes de informar?” E foi só através de outro cuidador que soube que teria de fazer dois pedidos distintos: um para obter o estatuto e o outro para receber o subsídio. “Como é que a Segurança Social não nos explica nada?”
Fernanda Ferreira sente as mesmas dificuldades. “Pedi à autarquia ajuda para fazer alterações na casa-de-banho e o pedido foi indeferido. Não sei como pedir o estatuto e não recebo qualquer subsídio. Põem as leis cá fora, mas para as executar é sempre difícil e quem não tiver conhecimentos não sabe de nenhuma das medidas”, constata.
Sempre que se dirige à Segurança Social nunca é informada de todas as possibilidades de apoio que tem disponíveis. “Muitas vezes, limitam-se a dizer que não tenho direito, mas depois há outros que têm acesso a determinados apoios. Só perguntando aqui e ali é que se vai sabendo os passos que se devem seguir para alcançarmos algo”, relata Fernanda.
Elsa acrescenta que a experiência ao longo dos anos tem-la feito “abrir os olhos”, mas critica a burocracia com que os cuidadores informais se confrontam a toda a hora. “Não entendo a razão de não ter qualquer ajuda quando sou eu que cuido do meu pai. O salão de cabeleireiro está quase sempre fechado. Tenho 47 anos e não posso deixar de trabalhar e gerir o meu ganha pão”, reforça.
Liliana Gonçalves, presidente da Associação Nacional de Cuidadores Informais, deu voz às preocupações destas cuidadoras, no 4.º encontro, que se realizou no sábado em Leiria, ao afirmar que “há centros distritais que dão informação contraditória”. “Pretendemos uma campanha de divulgação e esclarecimento mais informado, uma capacitação dos profissionais para, além do acesso ser facilitado, poder haver um maior esclarecimento aos cuidadores”, destacou.
Esta responsável reforçou ainda que o estatuto, aprovado em 2019, “fica aquém das necessidades” e “não reconhece todos os cuidadores informais”, tendo “critérios aos quais o cidadão tem de se adaptar”. “É uma lei que não salvaguarda os direitos dos cuidadores.”
“Dos 827 mil cuidadores que existirão no País, estão aprovados 11 mil pedidos. Temos uma taxa elevada de pedidos indeferidos”, cujos motivos “devem levar a pensar no que é preciso alterar no estatuto do cuidador informal”.
Descanso do cuidador
O Governo vai criar 10.300 vagas que irão reforçar os lugares em estruturas para idosos ou lares residenciais para pessoas com deficiência, permitindo o descanso do cuidador informal.
Ana Sofia Antunes, que esteve no encerramento do 4.º Encontro Nacional de Cuidadores Informais, garantiu que será publicada a portaria do descanso do cuidador, que já se encontra “em fase final de negociação e que prevê não apenas os valores dos descontos para a colocação de pessoas cuidadas em cuidados continuados para descanso do cuidador, descontos que vão ser suportados pela Segurança Social, mas também as condições de referenciação para vagas em ERPI ou em lares residenciais para pessoa com deficiência também para esse mesmo descanso”.
Na falta de vagas nestas redes, poder-se-á avançar para a referenciação no sector privado, “podendo também ser requerido o apoio da Segurança Social para isso”, adiantou a secretária de Estado da Inclusão.
Apesar desta tentativa de melhoria de acesso, Aida, Elsa e Fernanda confessam que não querem deixar os seus entes aos cuidados de terceiros. “Não seria capaz ir de férias e deixar o meu filho numa instituição. Seria uma semana de tortura”, confessa Aida Gomes.
Também Elsa Fiteiro admite que “não conseguiria desligar”. “O meu pai esteve três meses internado nos cuidados continuados e eu só falhei um dia para lhe dar o jantar”, revela.
Fernanda Ferreira acrescenta que “enquanto puder” o seu marido estará sempre consigo. “Não estou a ver-me deixá-lo para eu ir descansar. Daqui a uns tempos não sei. Agora, está fora de questão”, garante, ao afirmar que o seu anti-depressivo é o quintal, onde passa algum tempo a cuidar dos seus pintos e coelhos.
Apoio laboral
Ana Sofia Antunes afirmou igualmente que o Governo vai alterar a legislação relacionada com a “protecção laboral dos cuidadores, especialmente dos cuidadores não principais, como a sua protecção em termos de flexibilidade laboral, licenças, protecção em fase de cessação de denúncia de contrato de trabalho em período experimental, não renovação de contrato de trabalho a termo ou situações como extensão de licenças parentais por parte de progenitores que sejam simultaneamente reconhecidos como cuidadores”.
“Estamos também a desenvolver modelos que passem pela permanência da pessoa cuidada na sua habitação”, sendo “desejável um tipo de resposta no domicílio mais aprofundado do que aquele que é prestado pelo SAD [serviço de apoio domiciliário], mas que permita que o descanso do cuidador tenha lugar com a pessoa cuidada na sua habitação”, anunciou. Desburocratizar o pedido do estatuto do cuidador também está na agenda da secretária de Estado da Inclusão.