Está quase a cumprir um ano como bispo do Tete. Que balanço faz?
Tem sido uma experiência de amar e conhecer este território, que o Papa Francisco me confiou. Foi um tempo de conhecimento das comunidades e da realidade, um ano muito fecundo, mas também bastante sofrido. A província de Tete foi muito afectada pelo ciclone Idai, com a destruição de casas e perdas de vidas humanas.
Como é o cenário actual?
A pouco e pouco, vai-se fazendo a reconstrução. Na zona que inundou junto ao rio Zambeze, o governo proibiu a reconstrução de casas e a construção de novas, noutro local. Tem sido um processo longo. Noutras zonas, as pessoas já começaram a reerguer as habitações. A Igreja esteve presente, desde a primeira hora, no auxilio às populações, com a entrega de bens alimentares e de roupa e na reconstrução das casas e de estruturas como escolas e capelas.
A primeira experiência que teve em Moçambique aconteceu em 1992, no ano em que foi assinado o acordo geral de paz. Passados estes anos, o país ainda não conseguiu a normalização. Porquê?
Tive o privilégio de chegar a Moçambique num ano determinante, para aquilo que o país hoje é. Fui testemunha de um quase milagre. Pairavam no horizonte muitas interrogações, muitas dúvidas e medos sobre como é que o povo se conseguiria reconciliar consigo mesmo e com a sua história, marcada por uma guerra civil muito violenta. Havia a dúvida se as pessoas se conseguiriam perdoar e se as feridas seriam saradas.
A reconciliação aconteceu?
Conseguiu-se em Moçambique uma reconciliação verdadeira. As pessoas perdoaram-se. Não houve vingança. A consciência de que, naquele momento, pertencer a um povo era mais importante do que as divisões ideológicas ajudou à pacificação. Houve um grande sentido de responsabilidade da parte da população, sendo que a Igreja teve também um papel muito importante, seja na promoção do diálogo para alcançar o acordo de paz seja na conservação da própria paz e na formação de valores como a tolerância e a convivência democrática. Nos últimos anos, tem havido episódios de violência, com ataques e retaliações da parte das forças de segurança. Sempre que há eleições, como aconteceu em Outubro de 2019, há o ressurgimento do conflito. Esses ataques estão associados a um grupo dissidente da facção militar da Remano. Há um esforço para incluir esses jovens no exército nacional, de modo a que vejam as suas reivindicações satisfeitas.
Há ainda a situação de Cabo Delgado, no norte do país, onde se têm intensificado os ataques de grupos armados.
Aí, a situação é mais grave. Tem havido ataques a aldeias, com morte de pessoas e recurso a violências extrema. Desde 2017, já morreram cerca de 500 pessoas. São feitos por grupos de jovens, que as autoridades identificam como ligados ao fundamentalismo islâmico, que se radicalizaram. São ataques com motivações religiosas por detrás. Aquela é uma zona com grande influência islâmica. Grande parte da população é muçulmana. Há grupos que se radicalizaram, através de correntes ligadas ao extremismo islâmico, que vêm de fora e que inspiraram e mobilizam jovens para praticarem esse tipo de ataques.
Há receio desses ataques e extremismos alastrarem a outras regiões?
[LER_MAIS]Aparentemente a situação está circunscrita àquela zona. A presença islâmica em Moçambique é forte noutras províncias onde, até agora, não há sinais desse extremismo. Pensa-se que haverá também motivações económicas e sociais por detrás desses ataques. A região de Cabo Delgado tem muitas reservas de gás natural e de petróleo. Nos últimos anos, tem havido grandes investimentos por parte de multinacionais ligadas à exploração destes recursos naturais. Possivelmente, os ataques são também acções de desestabilização, cujas intenções se desconhecem. Falou da reconciliação dos moçambicanos consigo próprios.
E com Portugal? A reconciliação também aconteceu?
Nestes 25 anos de presença em Moçambique trabalhei em várias regiões do norte, do centro e do sul e nunca senti ressentimento ou ódio em relação aos portugueses e a mim em particular. As pessoas sabem distinguir aquilo que é o povo e aquilo que é a ideologia. O que de bom e de mau aconteceu em Moçambique no tempo colonial está circunscrito a uma época. Não sinto que haja hoje ressentimento entre os dois povos. O mesmo se verifica na relação entre os Estados. As relações políticas e económicas entre Portugal e Moçambique são muito boas. Penso que a minha nomeação como bispo de Tete reflecte também esse bom relacionamento. Os anos pós-independência foram de grande tensão, por motivos ideológicos, mas a situação está claramente ultrapassada. No meu caso pessoal, fui surpreendido por um acolhimento muito fraterno em Tete. Sinto- me verdadeiramente em casa.
As desigualdades sociais ainda são gritantes em Moçambique?
Moçambique está hoje muito diferente do país que encontrei em 1992. Houve uma melhoria geral no nível de vida das pessoas, mas a pobreza extrema ainda é muito visível. Do ponto de vistas das infra-estruturas e dos equipamentos, como escolas e hospitais, houve uma evolução muito positiva. O Governo tem sensibilidade social. É evidente que os recursos não chegam para tudo, mas há uma preocupação em resolver as necessidades básicas da população. Mas, se há uma pobreza muito generalizada, também há sectores onde a riqueza cresceu, com o surgimento de uma elite que se apoderou de uma parte significativa da riqueza do país. Há uma grande desproporção entre esta classe, ligada à elite, e a base populacional. A riqueza não é distribuída de modo équo e isso é um factor de conflitualidade social.
Em termos religiosos, há em Moçambique uma grande diversidade de religiões. Como é a convivência entre as diferentes igrejas?
Em Moçambique existe um pluralismo religioso muito acentuado. Cerca de metade da população é cristã e, destes, perto de 30% são católicos e 20% são de diferentes confissões religiosas. Tem havido um aumento muito grande de novas igrejas e de seitas, que assumem uma atitude pouco tolerante em relação às outras confissões e que levam para a frente um profetismo muito acentuado, procurando angariar fiéis de outras igrejas. A comunidade islâmica, que está presente sobretudo no norte do país, representa cerca 20% da população. Os restantes 30%, seguem as religiões tradicionais africanas dos antepassados. Tirando o caso de Cabo Delgado e das igrejas que estão a chegar e que têm uma certa agressividade em relação às outras, a relação entre as diferentes confissões é boa. A religião não é causa de conflito. As famílias são, do ponto de vista religioso, plurais. O ecumenismo e o diálogo inter-religioso existem a partir da família, estendendo-se à sociedade.
Como é a relação entre o Estado e a Igreja? Há liberdade religiosa?
A paz, além da reconciliação entre moçambicanos, trouxe também a reconciliação entre o Estado e a Igreja. Depois da independência, a Igreja católica foi muito atacada. A partir dos anos anos 90, também com a mudança da Constituição, a relação entre a Igreja e o Estado normalizouse. Hoje, é uma relação muito positiva e construtiva, com o Estado a reconhecer o papel moralizador da Igreja Católica e o contributo que ela dá, sobretudo nos sectores da educação e da saúde. Mas também há tensões. A igreja procura ser a voz daqueles que não têm voz. Apela à necessidade de inclusão de todos os moçambicanos na vida pública e aos valores da democracia e da tolerância. Neste contexto, foi muito importante a visita do Papa Francisco, em Setembro de 2019, que levou uma mensagem muito clara de reconciliação, justiça e paz.
Nessa visita o Papa chamou também a atenção para a corrupção.
A corrupção é uma doença que impede o país de alcançar os níveis de desenvolvimento e de inclusão desejáveis e que são necessários a boa convivência. O Papa chamou a atenção para a responsabilidade de todos de colocar, em primeiro lugar, o bem comum.
Saindo de Moçambique para Portugal, que recordações guarda da infância vivida em Albergaria dos Doze?
Foram tempos – final dos anos 70 – de uma mudança grande no País. Vivi num ambiente familiar muito simples, rural. Foi nesse ambiente, também religioso e cristão, que amadureci a minha vocação e o desejo de servir os outros como missionário, de optar por um ideal de vida que me permite não só pensar em mim, mas também nos outros. Das memórias mais antigas que tenho da infância é da primeira peregrinação que fiz com os meus pais a Fátima. Teria então quatro anos. Mais tarde, foi ali que fiz a minha formação sacerdotal inicial e que fui ordenado, há 25 anos. Sempre que volto a Portugal, é ali que ganho ânimo e entusiasmo para voltar para a missão.
É um admirador do Papa Francisco. Acredita que ele terá a força suficiente para imprimir as mudanças que já deu sinais de querer introduzir na Igreja?
A lufada de ar novo que trouxe à Igreja, com uma vontade de reformar, de renovar e de ter uma Igreja mais próxima das pessoas e em saída, ao encontro das periferias, não é uma novidade. É a razão de ser da Igreja, inspirada no exemplo de Jesus Cristo. Atrás deste modo de proceder do Papa há uma experiência pastoral, fruto de um trabalho vivido no seu país. Isso inspira a uma reforma que não parte de uma teoria, mas de uma experiência de vida pastoral muito importante. É uma mudança para a qual nem todos estavam preparados, mas a maioria do povo de Deus, sacerdotes e bispos, revêem-se neste pontificado e no ministério pastoral do Papa Francisco, sobretudo, no seu exemplo, nas atitudes, na sua simplicidade e na sua proximidade. Não há razões para voltar atrás.
Ele tem sublinhado inúmeras vezes o papel que a mulher tem dentro da igreja, mas não tem revelado vontade de lhe abrir a porta do sacerdócio.
Penso que a ordenação sacerdotal de mulheres é uma porta fechada. Há uma fundamentação bíblica para isso, devido ao facto de Jesus ter escolhido homens para seus apóstolos. Mas, o papel da mulher na Igreja vai muito além do acesso ao ministério sacerdotal. Elas têm um papel muito importante a desempenhar a todos os níveis.
Qual a sua posição em relação à obrigatoriedade do celibato?
Para os sacerdotes religiosos, de congregações, como eu, o celibato é um imperativo, porque vivem em comunidade e fazem a opção pelo voto de pobreza. Quanto aos sacerdotes diocesanos, essa poderá ser uma solução para o problema da falta de vocações ao sacerdócio. Em certos contextos, como aquele que foi agora discutido na Amazónia e que daqui a alguns anos se colocará também em Portugal, a possibilidade de ordenar homens casados, com experiência, maturidade e inseridos na actividade pastoral, tornar-se-á uma necessidade. O celibato não é um dogma. A legislação da Igreja tem de responder ao contexto e às necessidades. Por agora, será prematuro, mas no que diz respeito ao clero secular e diocesano, não estranharei que, no futuro, haja a possibilidade de ordenação de homens casados.