Da janela do segundo-andar é difícil olhar o céu porque também há prédios do outro lado da rua. O céu olhado cá de baixo parece o teto do corredor que é a rua: azul de dia, escuro de noite.
Se for de dia, o sol parece um candeeiro pendurado no teto da rua com uma luz muito forte. Se for de noite, quando está lua-cheia, parece um candeeiro com uma luz muito fraquinha. Se for de noite e a lua estiver em quarto-crescente, parece um barco que atravessa o teto. Se for de noite e não houver lua, as estrelas parecem vidrinhos a brilhar colados ao teto.
O vizinho do segundo-andar, à noite, gosta de ver aquele pedacito de céu entre os prédios da rua. Mas os prédios são altos e o céu é muito lá em cima e as estrelas estão ainda mais longe. – Uma destas noites quero olhar as estrelas… mas como deve ser!, dizia ele.
O vizinho do segundo-andar nunca tinha subido até ao terraço que há no cimo do prédio. – Podia muito bem ir no elevador… mas seria tão fácil. Ou subir as escadas!… Mesmo assim parece-me pouco esforço para olhar uma coisa que deve ser tão bonita.
Vou amanhã. E todos os dias eram véspera de amanhã. E todas as noites ficava sentado no sofá a olhar para um livro de astronomia que sabia de cor e onde estava o nome de todas as estrelas que há no céu.
– Amanhã, sem falta! E na noite seguinte sentava-se no sofá a olhar para as estrelas de papel e a desejar olhar para estrelas de verdade que estavam mesmo ali por cima do teto da rua.
O vizinho do segundo-andar tinha um amigo de quem gostava muito. Todos os dias se encontravam para beber um café e falar das mil-e-uma coisas de que são feitos os dias.
[LER_MAIS] – A amizade, dois dedos de conversa e um cafezinho, é o melhor que se leva desta vida!, gostavam de dizer um ao outro. E apertavam as mãos com muita força porque eram amigos desde sempre e gostavam mesmo muito um do outro. E ficavam para ali, sentados na montra do café, a ver passar as pessoas na rua e a inventar futuros para tanta gente.
– Aquela senhora tem um andar muito digno. Um dia vai encontrar um cavalheiro que a mereça, dizia o vizinho do segundo-andar.
– Um cavalheiro, sim, mas que use laço e tire o chapéu para a cumprimentar, respondia o amigo. E riam-se os dois à gargalhada felizes por pensarem em coisas que fariam os outros felizes. Um dia estava um nevoeiro muito cerrado. O teto da rua nem deixava ver o céu e a rua parecia um corredor ainda mais estreito.
Nesse dia o amigo do vizinho do segundo-andar não apareceu para o cafezinho. Nem no outro dia, nem nos dias seguintes. Nunca mais poderiam vir saborear conversas nem amizades. A montra do café deixou de ser o sítio onde podiam inventar futuros para as pessoas que passavam na rua.
A mão do amigo nunca mais estaria ali para a apertar com força como faziam desde sempre. O vizinho do segundo-andar chegou a casa, pegou no livro de astronomia que sabia de cor e onde estava o nome de todas as estrelas que há no céu e disse:
– Amanhã pode ser tarde de mais. De hoje não passa! Abriu a janela, olhou para teto da rua e foi subindo, subindo, subindo até ao terraço que há no cimo do prédio, para lá do nevoeiro. Olhou para as estrelas como se fosse a primeira vez e com o dedo ia apontando: – Sirius, Canopus, Alfa Centauri, Arcturus, Vega, Capela, Rigel, …
*Psicólogo clínico
Texto escrito de acordo com a nova ortografia