O preço dos alimentos não pára de subir. Segundo a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor, no primeiro dia de Fevereiro de 2023, abastecer a despensa com bens alimentares essenciais custava 222,16 euros, mais 38,53 euros (mais 20,98%) do que a 23 de Fevereiro de 2022, véspera do início da guerra na Ucrânia.
Face a esta situação, que tem afectado fortemente o orçamento familiar, o JORNAL DE LEIRIA foi ao encontro dos produtores para perceber que voltas dão alguns destes bens até se apresentarem, com estes preços, nas prateleiras dos hipermercados.
Referem-nos que toda a cadeia tem sido influenciada pelo aumento da factura energética, dos combustíveis, das condições climatéricas adversas, que têm feito encarecer algumas matérias- primas, como é o caso dos cereais, contribuindo para que as etiquetas apresentem dígitos muito maiores do que há um ano.
Mas o problema, lamentam, é que, apesar da subida dos preços, quem produz continua a ser mal pago, ficando a grande distribuição com a maior fatia de lucros. No fim do circuito, também o consumidor sai penalizado.
Vender alfaces a perder dinheiro
Dia 2 de Fevereiro, a alface frisada custava num hipermercado 2,89 euros o quilo. “É pouco”, apressa-se a explicar Fábio Franco, produtor da Ortigosa (Leiria), lembrando que talvez fosse dia de promoção ou que talvez nem fosse alface portuguesa. Em média, refere, uma alface tem sido vendida nos supermercados a 3,50 euros o quilo. Fábio é cliente do viveiro de plantas de Uziel Carvalho, de Monte Redondo[LER_MAIS], do mesmo concelho.
Na sua empresa, Uziel costuma vender um tabuleiro de 290 pequenas alfaces por 10 euros, valor que pode variar de acordo com as espécies, conta o proprietário da Germiplanta.
A Fábio Franco cabe replantar e fazer crescer as alfaces, que, por sua vez, fornece à Compotec, organização de produtores sediada em Torres Vedras. É a esta entidade, que Fábio tem vendido alface a cerca de 1,10 euros, perdendo alguns cêntimos em relação àquele que é o seu custo de produção, cerca de 1,70 euros.
Mas há bons motivos para preferir vender à Compotec, mesmo perdendo, nalgumas fases, algum dinheiro. Segundo ele, existem duas formas de fazer chegar os seus produtos às grandes superfícies. Ou através de uma organização de produtores ou negociando directamente com a grande distribuição.
Vender a uma organização de produtores garante “mais representatividade”, “maior garantia de escoamento”. Esta estabelece preços fixos ao longo do ano com os produtores e trata de os comercializar e encaminhar os artigos para as centrais da grande distribuição.
Se há períodos em que se perde dinheiro, também há oportunidade para ganhar algum, durante as fases de maior produtividade. E é para ter explorações hortícolas cada vez mais produtivas que Fábio e outros agricultores têm vindo a investir na modernização e automatização das estufas.
Outra forma de escoar os produtos é vendê-los directamente às grandes superfícies, através de concursos, contratos que ficam vigentes por períodos relativamente curtos. E nesta espécie de “leilão” ganham os produtos mais baratos, expõe o agricultor. “Mas é um sistema duvidoso e muitos produtores não sabem como é possível apresentar preços tão baixos”, conta Fábio, acreditando que muitas alfaces, que até podem ser embaladas em Portugal, têm origem em Espanha, Itália ou França, onde as regras de produção e de aplicação de produtos fitofarmacêuticos não são iguais àquelas pelas quais os produtores nacionais têm de se reger.
Talvez isso justifique que alguns consigam fazer crescer alfaces mais rapidamente e com menores custos de produção, supõe.
Nos últimos tempos, a grande distribuição só se viu de alguma forma obrigada a pagar um pouco melhor às organizações de produtores, porque, a perder dinheiro durante tanto tempo, muitos agricultores nacionais deixaram de cultivar alface. E, com o frio generalizado na Europa, sem excedentes noutros países, de onde pudessem importar, as grandes superfícies viram-se forçadas a pagar melhor aos portugueses para evitar falhas de abastecimento, aponta Fábio.
Mas continuam, do seu ponto de vista, a pagar mal ao produtor e a ficar com margens avultadas, também para prejuízo do consumidor. “As grandes superfícies deverão estar a pagar às organizadores de produtores 2,20 ou 2,30 euros por quilo de alface.
Contudo, se lhes comprarem uma tonelada, talvez lhes paguem 900 quilos. Isto porque a distribuição imputa aos produtores, logo à cabeça, um custo por eventuais perdas de qualidade, degradação que os produtos possam ter, mesmo quando o acondicionamento na loja é da responsabilidade dos supermercados, que nem sempre têm cuidado com temperatura”, exemplifica.
Às organizações de produtores é ainda cobrado o aluguer de caixas, onde as lojas apresentam os produtos, aponta. Fábio defende que o Estado deveria zelar pela transparência neste circuito e por vendas a custo justo. Mas realça que quem tem capacidade para vencer o braço-de-ferro com a grande distribuição é o consumidor final, que tem de ser esclarecido. “O consumidor tem de saber que, quando pega num alimento na loja, é desse seu gesto que depende o bom funcionamento da cadeia em termos económicos, ambientais e de segurança alimentar.”
Produtores de leite são cada vez menos
Leite UHT meio gordo, de marca branca, a 0,86 euros o litro, foi o preço que registamos no passado dia 2, numa grande superfície comercial. Contudo, quem tem explorações de leite está actualmente a vendê-lo a cerca 60 cêntimos por litro, informa Jorge Silva, presidente da Associação de Produtores de Leite de Portugal, sediada em Alfeizerão (Alcobaça).
“Vende-o a 60, mas tem um custo de produção nunca inferior a 50 cêntimos”, que resulta dos elevados custos da energia e dos cereais, cujo preço só agora parece querer estabilizar, nota Jorge Silva.
No caso do leite, são as cooperativas que o compram ou então algumas indústrias privadas. Depois, nas fábricas, o leite é pasteurizado ou ultrapasteurizado e é embalado. Segue depois para a central de compras do hipermercado, que, por sua vez, o distribui pelas suas lojas.
“A partir do momento em que sai do produtor, perde-se a ideia das margens de lucro que ficam para cada elo da cadeia. São empresas privadas e não têm de o divulgar”, conta o presidente, para quem deveria existir mais transparência no processo. Mas acredita que, no caso do leite meio gordo de marca branca, as margens de lucro que ficam com a distribuição até sejam mais limitadas do que noutros produtos.
Do lado dos produtores, as margens continuam baixas, apesar de terem melhorado um pouco. Durante muito tempo, trabalharam a perder dinheiro, recorda. Mas se a realidade se alterou não foi por acção do Governo. “Foi o mercado que o impôs”, constata. “Como a produção de leite em Espanha também baixou, os espanhóis vieram comprar o nosso leite. E como a produção nacional também não é muita – porque muitas explorações não resistiram e foram fechando – começou a escassear e foram obrigados a pagar-nos mais.”
Proprietário de uma exploração de vacas leiteiras em Monte Redondo, Uziel Carvalho, explica que, “historicamente”, os grandes supermercados “ficam com a fatia de leão”. “O produtor estará agora a receber mais 10% ou 12% do que recebia, por litro, mas o consumidor está a comprá-lo 20% mais caro. Estávamos a vender por 36 cêntimos o litro e no hipermercado vendia-se a cerca de 50 cêntimos. Agora, estamos a vender a 56 cêntimos o litro e a embalagem mais barata ronda os 80 cêntimos nas lojas.”
“Nunca houve regulação da grande distribuição, mas também não sei se deve ser o Governo a impor-se às grandes superfícies. O facto é que os produtores sempre foram desunidos, amorfos e sem uma associação forte que consiga negociar junto da distribuição”, considera.
Suinicultores com “margens residuais”
Um quilo de bifanas de porco, já com desconto de 15%, estava a ser vendido numa grande superfície, no dia 2 de Fevereiro, por 3,99 euros o quilo. David Neves, presidente da Federação Portuguesa de Associações de Suinicultores, explica que o produtor está actualmente a vender ao matadouro, em termos médios, um quilo de porco por 2,20 euros. A este valor podem acrescer 5 ou 6 cêntimos do custo de transporte, dependendo da distância do matadouro.
“Daí para a frente, seguem-se os custos do processamento até chegar à prateleira do supermercado”, despesas que os produtores desconhecem. O que são conhecidas são as margens que ficam do lado dos suinicultores e que, apesar de alguma melhoria, continuam “residuais”, podendo ser de 5 cêntimos ou até menos, expõe David Neves.
Mas já foi pior. “Durante muito tempo as margens estiveram negativas em 50 cêntimos”, lembra. “Entre o final do primeiro semestre de 2021 e o final do primeiro semestre de 2022, estiveram no negativo, devido aos custos da energia e dos preços dos cereais, cenário que se agravou com a guerra na Ucrânia”, recorda.
“Mais de 75% do custo de produção corresponde a alimentação animal e houve cereais que aumentaram mais de 100%. O preço da energia subiu até mais de 600%”, prossegue David Neves. A partir do segundo semestre de 2022, a situação melhorou, devido à estabilidade dos preços dos cereais.
Mas não só. Os preços da carne acabaram por aumentar devido à quebra de produção, uma vez que, durante este período mais negro, em Portugal e Espanha, muitas empresas sucumbiram. Mas a situação está longe de ser ideal, aponta o dirigente, que defende a constituição de um observatório dos preços, para que todos possam perceber onde ficam as margens em cada parte da cadeia.
“Se assistimos à contracção da produção, com produtores que não resistem, é porque não têm margens”, justifica. Pelo contrário, “percebemos que a grande distribuição tem margens superiores às que tinha há dois ou três anos”.
“O Governo não tem dado a devida atenção à agropecuária”, entende o presidente, para quem a produção nacional deve ser potenciada.
Mercados tradicionais de peixe “em erosão”
João Paulo Delgado, presidente da Mútua dos Pescadores, defende que, por norma, “os preços pagos à produção estão muito longe dos que são praticados junto do consumidor final nas grandes superfícies”. Aponta que a grande distribuição “monopoliza” o circuito, enquanto se assiste à “acentuada erosão dos mercados tradicionais e das cadeias curtas de abastecimento”.
O peixe fresco, quase todo, é descarregado obrigatoriamente pelos pescadores nas lotas e pontos de venda espalhados ao longo da costa nacional. O pescado é sujeito a leilão realizado de forma decrescente, “contrariamente a quase tudo o que é transaccionado em leilão, que quase sempre é feito de forma crescente”, realça João Paulo Delgado.
A maioria do pescado é licitado pelos grandes grossistas que, por sua vez, estabelecem contratos de abastecimento com as grandes superfícies. “O grossista tenta comprar o mais barato possível ao pescador para vender à grande distribuição o mais caro que conseguir”. Porque o grossista tem de ganhar dinheiro de forma a “aguentar” os longos prazos de pagamento da grande distribuição, que por norma paga a “60, 90 ou mais dias”, explica o dirigente.
“Por seu turno, a grande distribuição tenta fazer o melhor contrato com o grossista para que possa vender o produto ao consumidor final a um preço que lhe garanta a margem de lucro já previamente calculada. Escusado será dizer que o lucro será o maior que conseguirem”, observa.
João Paulo Delgado alerta para um “mercado completamente desregulado”, onde são “os produtores e os consumidores que arcam com as gravosas consequências de todo este negócio profundamente injusto”. E exemplifica. O pescado vendido na lota tem de ser disponibilizado por tamanho, grau de frescura e de apresentação. Assim, “no mesmo dia, poderíamos encontrar esta divisão do carapau: T1/A – 6,05 euros/quilo; T2/A – 4,71 euros/quilo; T2/B – 2 euros/quilo; T3/A – 2,56 euros/quilo; T4/A – 1,39 euros/quilo; T5/A – 1,86 euros/quilo. No entanto, estas segmentações não se reflectem da mesma forma no consumidor final”, aponta o representante da Mútua. De facto, no passado dia 2, a designação observada no hipermercado era diferente: carapau pequeno 20/30 fresco, a 3,99 euros o quilo.
Distribuição é “correctíssima” com o pão
Três euros o quilo custava a carcaça portuguesa num hipermercado no passado dia 2. No caso do pão, quem fornece as grandes superfícies não tem do que se queixar em relação à actuação da distribuição, nota José Palha, presidente da Associação Nacional de Produtores de Cereais, Oleaginosas e Proteaginosas.
Isto porque os custos de produção subiram, os preços feitos pelos produtores também tiveram de subir, bem como os da transformação, mas esse aumento continua sem se reflectir nas prateleiras das grandes superfícies. “Estão a aguentar os preços. Sabem que o pão é um bem essencial e têm esse cuidado.
Têm sido correctíssimos”, verifica o presidente. José Palha lembra que, no ano passado, o preço do trigo atingiu os 550 euros por tonelada, quando, em 2019, se situava entre os 220 e os 250 euros.
Este aumento esteve relacionado com a subida de preço dos combustíveis e da energia, sendo que, depois de rebentar a guerra na Ucrânia, triplicaram os custos de produção. E também a seca teve impacto negativo na quantidade produzida, lembra o presidente.
O dirigente conta que quem produz trigo o vende a organizações de produtores, que, por sua vez, o vendem à indústria. Nestas viagens, têm aumentado os custos com combustíveis e transportes. Já quem fabrica o pão também se depara com a subida do preço da energia, usada para a cozedura.
Mas José Palha diz que não é fácil perceber as margens que ficam com cada elo desta corrente. “Uma tonelada de trigo pode dar para 600 quilos de farinha, mas também pode dar menos. O rendimento industrial da farinha depende muito do cereal e do género de pão que é feito.”
Até ao fecho desta edição não foi possível obter reacções junto da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição.