O tempo da Páscoa está aí e continua a ser, para mim, um tempo muito especial. Mesmo sem recurso ao calendário gregoriano, sinto que conseguiria adivinhar a sua chegada.
Quando a natureza no seu labor me revela o equinócio da primavera e a ele se vêm juntar dias cinzentos de Sol que me deixam triste e me convidam à introspeção eu já sei, é Páscoa!
Acho que esta necessidade de, neste tempo pascal, me autoanalisar nasceu quando era criança, estimulada pelo que via e sentia acontecer, nessa época do ano, na família.
Por um lado, as limpezas da Páscoa, todas as janelas abertas de par em par, o cheiro a cera, o amontoado de papéis de jornal com que se dava lustro às pratas e o som forte e seco do bater nas carpetes para lhes tirar o pó, obrigavamme a ficar, voluntariamente, enclausurada no meu quarto.
Era demasiada desordem para mim, só me restava, no meu canto, pôr-me a pensar.
A pensar na alegria que a seguir àquele desconforto se instalava na família e a meditar nos porquês de dar tanto trabalho e exigir tantos sacrifícios, o simples ato de se querer ser feliz!
Por outro lado, nascida e educada no seio de uma família cristã, eu fui ensinada a ver na Ressurreição de Cristo a prova de como só o amor pelo outro pode vencer a morte e convenhamos que tal conceção me dava (ainda hoje me dá) muito que pensar.
Mas, agora tudo mudou, olho para a rua e em vão procuro sinais das limpezas da Páscoa. Fico melancólica, nenhum!
Nas casas todas as janelas continuam fechadas e o som do bater nas carpetes já não se ouve… Porém, algo me distrai.
Uma senhora que vai a passar carregada de sacos deixa cair um deles e observo um rapaz, daqueles que usam as calças a ameaçar cair pelas pernas, apressar-se para a ir ajudar.
Trocam umas palavras e seguem juntos, o rapaz com os sacos da senhora, ela com a sua malinha de mão!
Engraçado, acabei de sentir como a minha Páscoa me obriga a relativizar a importância das minhas memórias. O que me interessa saber se as limpezas da Páscoa desapareceram?
Como tal coisa alguma vez se pode [LER_MAIS] comparar à importância do amor pelo outro, o de tudo fazer para tornar melhor a sua vida, que naquele rapaz vi continuar a ser um comportamento humano insubstituível.
Daqui derivo para a intemporal importância da educação e formação das crianças. Nas famílias, com ou sem religião e numa desejável escola laica, como pode o desenvolvimento da empatia não ser considerado, por todos, um dos grandes objetivos educacionais?
Mas voltando às minhas Páscoas passadas, recordo com saudade o momento em que os meus pais discutiam sobre o que dar a cada afilhado.
Numa dessas alturas, aprendi uma grande lição: ao Joaquim, um rapaz de uma família humilde genealogicamente apadrinhada pela minha família, decidiram dar um triciclo. Fiquei estupefacta, logo um triciclo, uma coisa que sabiam que eu queria tanto e que a mim se recusavam a dar! Protestei, mas de nada me valeu.
Disseram-me que por ser menina um triciclo não era um brinquedo aconselhável e que, apesar disso, se me apetecesse muito andar podia fazê-lo no do meu irmão; já na família do Joaquim nenhum dos seus quatro irmãos tinha um triciclo.
Engoli em seco e, mostrando-me amuada, fui para o meu quarto pensar. Mas era Páscoa e ao amor cristão veio juntar-se alguma racionalidade e eu fiz uma encantadora descoberta: senti como é bom e nos deixa feliz trabalhar para a felicidade dos outros.
Ora, como pode a Páscoa não ser tão especial para mim?
*Professora
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990