Meu Caro Zé,
Quando pensei escrever esta carta tinha quase decidido não falar de um tema ubíquo na sociedade portuguesa atual, que muito tem a ver com a qualidade da democracia em que vivemos e que, supostamente, dada a lógica de que a sociedade humana caminha, embora aos altos e baixos, no sentido do progresso, este se devia estender à democracia.
Só que, ao ler Os Buddenbrook de Thomas Mann, fui confrontado com o tema num sentido em que parece evidenciar-se um retrocesso na qualidade da democracia em que vivemos. Thomas Mann descreve a sociedade de Lübeck, no século XIX, em que as distâncias sociais são ainda muito grandes e assumidas.
Basta transcrever as palavras de uma dos Buddenbrook (Tony) para caraterizar a situação: “Nestes anos todos, pensei nas palavras que alguém, uma pessoa inteligente, me dizia um dia: ‘A menina sente simpatia pelos aristocratas…’ – foram as suas palavras – ‘e quer que lhe diga porquê? Porque a menina também pertence a esse grupo… Um abismo a separa de quem não pertence ao círculo das famílias poderosas.’”
Pois neste ambiente vagou um lugar de senador, a que se sucedeu uma eleição. Sobre ela escreve Thomas Mann: “Era mais do que urgente uma lufada de ar fresco no Senado. O cônsul Huneus, negociante de madeiras, cuja fortuna pesava, e muito, na balança das ponderações, estava excluído por força da lei, já que o irmão pertencia ao Senado.”
O vencedor da eleição foi o irmão mais velho de Tony, Tom, que no ato de investidura, fez o seu juramento, do qual destaco: “Juro… administrar com honradez [LER_MAIS] os bens públicos e ser imparcial no exercício do meu cargo, nomeadamente em situações de eleições, não tornando partido, nem em meu próprio proveito, nem em proveito dos meus familiares e amigos.”
Como vês, Zé, com o que se passa em Portugal e, designadamente, no Governo, quer no que diz respeito a família e amigos quer no que toca ao tempo de eleições, era impossível não ser tocado por esta descrição do século XIX, com a inevitável legitimidade da pergunta: “A qualidade da democracia melhorou?”
Tu e o leitor responderão, sem embargo de ser necessário, como condição prévia, distinguir, por um lado, se isto é um problema de legalidade ou de legitimidade e de ética (não se fala tanto de “ética republicana”?) e, por outro, da não confusão do reconhecimento de que há cargos de proximidade em que a confiança pessoal é imprescindível e outro, a maioria, onde o mérito é condição curial de escolha, em particular no caso “dos bens públicos”.
Nesses não chega ter mérito suficiente, é preciso ter o maior mérito, porque “os bens públicos”, ao contrário dos privados, não são posse de ninguém e devem ser “administrados com honradez” (e não utilizados quase discricionariamente) e “imparcialmente” (isto é, sem privilegiar qualquer parte).
Parece-me que estamos a andar para trás, ou não? E, claro, já nem falo do “círculo das famílias poderosas”, em que “família” pode passar a ter um sentido muito alargado e equívoco. Até sempre,
*Professor universitário
*Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990