É difícil precisar o lugar a que pertence. É um cidadão canadiano, uma opção política que tomou nos anos 80. Mas nasceu em Buenos Aires, em 1948, e a sua língua materna é o espanhol. Cresceu em Tel-Aviv, onde seu pai foi embaixador, tornando-se fluente em inglês.
Nos anos 70 deixou a Argentina. Envolvido em projectos literários e editoriais, viveu em França, Inglaterra, Itália, Tahiti. Em todos estes lugares, como que por “geração espontânea”, os livros começaram a amontoar-se em torno dele. Talvez pudéssemos ler nesse movimento dos livros um itinerário de uma identidade em mudança.
Em 2000, no decurso de uma visita à região francesa de Poitou-Charentes, depara-se, em Mondion, com um presbitério medieval que de imediato lhe pareceu o local ideal para dispor finalmente dos 35 000 volumes da biblioteca que juntara nas suas peregrinações anteriores.
Era uma pequena aldeia, com uma escassa dezena de casas, a sul do Vale do Loire. Alberto Manguel pensou: agora que os meus livros encontram o seu lugar, talvez eu tenha encontrado o meu. Sabemos hoje que a permanência do escritor com a sua biblioteca em Mondion cessou em 2015.
Outro começo, desta vez em Nova Iorque. Empacotar de novos os livros que década e meia antes desempacotara com desvelo, de surpresa em surpresa, reconstruindo memórias e afinidades electivas. Uma biblioteca é uma conversa interminável, uma narrativa que recusa a palavra “fim”, um processo incessante.
“A minha história – diria Manguel – muda de biblioteca para biblioteca, ou do rascunho de uma biblioteca para a seguinte, nunca uma precisa, nunca a última”. Ele acredita que cada recomeço não é uma repetição, porque haverá sempre novas relações que serão assinaladas. Uma biblioteca assim constituída – os antigos [LER_MAIS] diziam uma livraria – não se deixa dispor segundo a ordem abstracta e classificatória: o autor, a data, o tema.
A biblioteca de Manguel é um continuo fazer, desfazer, refazer, construir, desconstruir, reconstruir. Uma desordem que assenta na ordem do caos. “Ariadne transformou o labirinto num caminho claro e simples para Teseu; a minha mente transforma o caminho simples num labirinto”.
Pois bem, em 2016 Alberto Manguel aceitou o cargo de eirector da Biblioteca Nacional da República da Argentina. Gosto de pensar que o fez não só como imperativo democrático, mas também como um tributo a José Luís Borges, para quem leu entre 1964 e 1968 (Borges deixara de ver em 1950). Porque de outro modo seria incompreensível.
“Sempre adorei bibliotecas públicas, mas devo confessar um paradoxo: não me sinto à vontade a trabalhar nelas. Não gosto que me proíbam de escrever nas margens dos livros que levo de empréstimo. Não gosto de ter de devolver livros, quando descubro neles algo e fascinante ou precioso. Como um saqueador ganancioso, quero que os livros que leio sejam meus”.
Não perca: Alberto Manguel, Embalando a Minha Biblioteca. Uma Elegia e Dez Divagações. Lisboa, Tinta da China, 2018.
*Docente do Instituto Politécnico de Leiria