Quando, no domingo à tarde, na zona dos Talhões, Vieira de Leiria, a normalidade foi interrompida por momentos de autêntico terror, Filipe Pereira viu-se em circunstâncias que as palavras não chegam para descrever. "Pareciam bolas de fogo a cair em cima da gente", explica, regressando às horas de maior aperto vividas na casa dos sogros, que é, ao mesmo tempo, o seu local de trabalho como mecânico que gere o próprio negócio. Agora é ele – e a mulher, Liliana Leal – que dá abrigo aos sogros, porque a residência de Joaquim Santo e Leonor Monteiro se encontra impossível de habitar.
Ali, nos Talhões, "o problema maior" foi um pedaço de terra no fim da rua invadido por silvas com metros de altura. O vizinho "já andava há mais de um ano" a queixar-se junto da Protecção Civil, da autarquia e da GNR, mas as autoridades alegavam não conhecer o proprietário do terreno. "Nunca ninguém se preocupou, foi preciso haver esta desgraça", queixa-se Filipe Pereira. "Caíram as fagulhas em cima daquilo, foi um rastilho de pólvora, as chamas saltavam por cima do pátio do meu vizinho. Incendiaram-me os carros, arderam os anexos ao meu vizinho, a garagem, a casa dele".
Na oficina arderam várias viaturas de clientes, equipamentos, paredes, telhado. "Tem de ser toda refeita" porque "está tudo destruído", lamenta Filipe Pereira. Os prejuízos são avultados, mas há seguro. Salvou-se o mais importante, as pessoas. Liliana Leal, os dois filhos menores e os pais fugiram primeiro, Filipe Pereira e um primo depois. O lume "fazia remoinho", os pinheiros tombavam. "A preocupação foi sair. Pareciam bolas de fogo a cair em cima da gente. O meu vizinho igual. Quando começaram a rebentar as janelas da casa dele e o fogo a entrar pela casa adentro, agarrou no carro, na filha e na mulher e a solução foi fugir", contou ao JORNAL DE LEIRIA. Ali perto, Armando Vicente andava terça-feira de balde e pincel na mão, a marcar com tinta os pinheiros que são para abate. Uns 40 só ali nos Talhões. "Há-de vir aí hoje o indivíduo que negoceia isto, a ver quanto é que ele me dá". Outros pinhais que tem na zona – "uma meia-dúzia" – estão no mesmo estado. "Ardeu tudo, tudo. Não ficou um".
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Em Vieira de Leiria o fogo destruiu 10 casas de primeira habitação. Incluindo a de Júlia Féteira, 69 anos, que trabalhou décadas nos serviços da Mata Nacional de Leiria e, já reformada, vivia numa casa florestal do Estado, arrendada. O genro, Cláudio Santos, explica a destruição: "Quando conseguimos finalmente entrar em contacto com os bombeiros, o carro deles estava sem água, já não havia água suficiente para apagar o fogo. Propagou-se para o sótão, tentaram controlar, mas já não foi possível. Abateu tudo. Quarenta anos de uma vida, em questão de segundos".
Na zona industrial de Vieira de Leiria, ardeu por completo uma fábrica de cartonagem, a Vincarte, a funcionar no local há 20 anos. O stock e o material pronto para entrega aos clientes serviram de combustível e seis postos de trabalho ficaram na linha de fogo em minutos. O proprietário do negócio e administrador, Armando Constâncio, já tranquilizou os trabalhadores: garante que vai salvaguardar os empregos e reconstruir a empresa. "Vamos começar do zero porque não há nada a fazer", lamenta uma das funcionárias, Olga Sofia. Outra colaboradora da Vincarte, Maria da Conceição Veríssimo, lamenta não ter sido possível acudir. "Andámos com o fogo encostadinho às nossas casas, era impossível".
Momentos de pânico, também, no parque de campismo da Praia da Vieira, onde arderam várias tendas e caravanas. Carlos Ribeiro foi um dos últimos a sair, mas o que lhe pertence salvou-se. "Viam-se focos de incêndio a virem pelo ar e a pousarem dentro do Parque", descreve. Foi necessário evacuar 30 pessoas, alguns fugiram para a estrada, outros para a beira mar.
No Casal das Raposas, as chamas pegaram a um depósito de madeiras, propriedade de José Carcageiro, mas a ajuda dos vizinho, de mangueira, impediu que se propagasse às casas em redor. Menos sorte teve um sucateiro residente nas proximidades, que viu vários animais morrerem carbonizados. Mais à frente, já depois do rio, a caminho da Praia do Pedrógão, o lar de idosos Via Sol, com 22 utentes, chegou a ser evacuado. A proprietária, Isabel Afonso, confessa que lhe assomou o pior ao pensamento. "Estava a ver que chegava cá e tinha pessoas mortas".
No mesmo concelho, mas na Marinha Grande, os maiores prejuízos aconteceram nos lugares do Pilado, Garcia, Escoura e Salgueira, mas também na Fonte Santa e na Pedra se viveram momentos de insegurança, no domingo. Muitas pessoas passaram a noite na rua, não dormiram. No Tremelgo, os bombeiros conseguiram defender as casas e salvar uma parte do parque de merendas e um eucaplito centenário (árvore notável classificada de interesse público, com 50 metros de altura). Já na segunda-feira, a preocupação centrou-se nos lugares da Várzea e Gaeiras.
Pombal: "Não se salvou nada". Em Brejos Velhos, no Carriço, Alice, 75 anos, chora agarrada ao telefone fixo. Uma das poucas coisas que se deve ter salvado do incêndio que seguiu a Estrada Atlântica desde o concelho de Alcobaça até Pombal.
Inconsolável e rodeada de amigos e vizinhos, alguns também com as lágrimas a caírem, Alice só sabe dizer que ficou sem casa, sem documentos, sem roupa e sem as suas “coisinhas”. Salvou-se porque a vizinha pegou nela e levou-a “dali para fora”. Tem dois filhos mas moram longe. Vivia sozinha e recorda as chamas como “um inferno”. “Não se salvou nada na casa”, constata um dos vizinhos que a acudiu, acrescentando que ainda tentaram salvar a habitação molhando a zona, mas depois ficaram sem electricidade. “Ajudámo-nos uns aos outros como pudemos.”
Em volta da casa as cinzas dominam. Nem as árvores de fruta escaparam às chamas e pelo chão estão espalhadas várias maçãs queimadas. O cenário à volta mostra que as chamas não tiveram contemplação com os pertences da D. Alice que vai agora procurar um lugar para morar. Os amigos enchem-na de mimos, mas a imagem da casa destruída não lhe sossega o coração.
Poucos quilómetros à frente, em Juncal Gordo, Manuel Duarte não viu os seus bens arderem. Assim que o fogo começou a rondar a sua casa, situada numa zona de pinheiros, A GNR foi buscá-los. “Se tivesse aqui tinha tentado salvar as coisas, mas eles não me deixaram e levaram-me para o Carriço”, conta olhando para a destruição de um anexo,onde guardava a lenha e vários materiais agrícolas. A tristeza de Manuel vai ainda para um dos seus cães, que morreu carbonizado. “Tinha no pátio vários cães. Mais tarde o meu neto ainda veio tentar buscá-los, mas um deles morreu. Acabei de o enterrar”, lamenta.
Com um olhar desolador, Manuel, um homem para os seus 70 e muitos anos, garante que tinha a faixa de contenção no seu terreno. “Eu tinha tudo limpo, mas eles não limpam a mata nacional. Aquilo está tudo sujo.”
“Ardeu o tractor, o carrinho de mão e até os estores da casa estão todos torcidos com o calor. Felizmente, salvou-se a casa”, acrescenta a esposa, ainda a tentar convencer-se do que aconteceu na noite de domingo. “Eram coisas que os meus netos adoravam brincar. Arderam as minhas coisinhas”, resigna-se.
Cláudio Garcia e Elisabete Cruz