Como está a ser o regresso à representação, depois de um período fora, a viajar?
No dia em que voltei, no aeroporto, ligaram-me para fazer um espectáculo. As coisas, felizmente, na minha vida, vão acontecendo sem eu as programar. E voltei logo para o teatro, que era aquilo que queria. Estive uns seis meses a fazer um espectáculo com o José Raposo. E consegui voltar para aquilo que faço de maneira mais constante, que são as dobragens, desenhos animados, documentários. As locuções de rádio e televisão nunca deixei porque tenho clientes fixos. Então, viajo com material, faço as edições todas sozinha.
Em viagem?
As locuções de rádio e televisão, sim. Publicidades.
Em sítios improváveis?
Ah, sim. Por exemplo, no Quénia, tive de andar a subornar os putos com rebuçados para eles calarem as galinhas e houve um spot de rádio – sou a voz oficial de um banco – que foi para o ar com uma galinha. Não conseguiram tirar. No Brasil, estava a viver numa ilha, porque ia viajando e trocando alojamento por trabalho, estava a trabalhar num hostel, fazia as limpezas e fazia as camas, e ali a internet era muito lenta e era tudo aberto, cabanas, muito difíceis de insonorizar. Andei a bater de casa em casa, a ver se conseguia arranjar uma arrecadação. E lá arranjei. Não tinha luz, era um espaço muito pequenino. Estava a gravar com a luz do meu telemóvel, com o microfone, com os phones, e comecei a sentir umas comichões nos pés. Quando saí, abri a porta, o chão estava coberto de baratas. Deve ter sido a locução mais rápida da minha vida.
Comecei por perguntar como está a ser o regresso também para perceber se não sente um apelo para voltar às viagens e ao voluntariado.
Aconteceu-me, nestas duas viagens grandes, ficar meia deprimida. Nesta última vez, mais, porque o que estava a viver era uma vida paralela, com estímulos diários constantes, com novas coisas, novas pessoas. Não estava dependente de nada, se não gostava de estar ali, mudava.
Dias intensos.
Sim. E uma realidade completamente diferente. Quando voltei, primeiro foi difícil retomar o ritmo de trabalho, depois percebi que afinal tinha sido muito tempo. Cheguei e amigas minhas já tinham estado grávidas, já tinham filhos e eu nem as tinha visto com barriga. Então, foi difícil o regresso. Mas tenho de me policiar para ficar cá mais tempo, por uma questão de trabalho e sanidade. Porque, se estiver sempre fora, é difícil criar uma carreira.
Se tem de se algemar a esta carreira, é porque é mais livre fora?
Consigo conciliar as duas coisas. Uma actriz que gosto muito, a Dalila Carmo, trabalha seis meses e viaja seis meses. Já organiza a vida dela de maneira a que as pessoas saibam que é assim. Mas é a Dalila. Eu adorava conseguir fazer isso. E sei que mesmo quando tiver filhos, no futuro, é uma coisa que quero poder fazer. Para já, preciso de estabelecer-me, cá.
Vai pela primeira vez, em 2015, para um projecto de voluntariado, no Quénia. Com que objectivos?
Eu fazia parte de um programa internacional de jovens voluntários, durante muito tempo, e estive até à frente de um grupo muito grande em Lisboa. Na altura, estávamos a ajudar este projecto com material escolar, um projecto de uma portuguesa, que encontrámos no Facebook. E decidi que queria ir. Sozinha, sem apoio de nenhuma organização, para perceber exactamente o que eles faziam lá, e de que maneira, ao voltar para cá, os podia continuar a ajudar. A minha participação não correu tão bem como estava à espera, porque, nestes projectos, há muitos interesses. Só quem está no terreno é que percebe. Mas o projecto funcionava bem.
Depois de conhecer de perto a realidade, fica convencida que estes projectos mudam a vida das pessoas?
Há uns que não e há outros que sim. Mas demora muito tempo. Onde há caridade, há dinheiro. E onde há dinheiro, há interesses. E há negócios. Basta pensarmos: África está igual há décadas. O filme O Fiel Jardineiro, que tem para aí 15 anos, passa-se na favela onde eu vivia, no Quénia, em Nairobi. E não mudou nada. Está tudo na mesma. E as organizações – Unicef, Cáritas, Cruz Vermelha – estão no terreno há muito tempo. Lá, porta sim, porta não, é uma organização de solidariedade.
O que se está a fazer de forma errada?
É uma coisa que nós não conseguimos compreender, cá. A corrupção é intrínseca, lá, é um dado adquirido. É complicado explicar a um miúdo, que não tem perspectivas nenhumas de futuro, porque a mãe e os avós e os bisavós nasceram e viveram e morreram ali, é difícil explicar-lhe que se for honesto e estudar consegue sair dali. Porque ele não tem uma referência, um exemplo. É preciso educá- los, é preciso ensiná-los? Sim, mas não se pode ir do Ocidente fazer as coisas à nossa maneira porque na Europa funciona muito bem. Não. É diferente, é muito diferente.
Só os locais são corruptos?
Não são só os locais. Às vezes é preciso entrar no esquema, não se pode ir contra o sistema, senão é muito complicado, muito difícil. Na segunda vez que fui, acabei por me juntar a outro projecto, com o qual me identifiquei mais, que é o Há Ir e Voltar, da Diana Vasconcelos, também portuguesa, que apoiava duas escolas e conseguia angariar dinheiro para alimentação e despesas médicas. Fui e fiquei a tomar conta do projecto na ausência dela, na altura em que estávamos a construir uma escola. De repente, era eu, uma miúda de metro e meio [1 metro e 62], branca, no meio de não sei quantos homens, numa favela, a quem não podia dar a entender que eu é que estava à frente daquilo, porque se és branco significa que tens dinheiro e vêm com mil e uma histórias. É preciso ser muito forte. No início era muito difícil para mim dizer que não. E não vale a pena ir para um sítio e ficar dois, três, quatro meses. É preciso uma pessoa estabelecer-se lá, conhecer bem as pessoas.
Que tipo de tarefas tinha?
No primeiro projecto, um bocado de tudo. Fui para lá com a ideia de criar um grupo de teatro na favela, achava eu que era aquilo que eles precisavam, um grupo de teatro, que ia ajudá- los, as emoções e tal, depois percebi que não era nada disso. Era só, pura e simplesmente, fazer coisas que fossem úteis. Por exemplo, ajudá-los a construir uma horta, estar com eles a fazer os trabalhos de casa, dar-lhes amor e carinho, ir com eles comprar roupinhas, ver como estavam de rotinas, check-ups médicos, falar com as mães, falar com as miúdas e explicarlhes que a promiscuidade sexual não é normal, que não é normal se o vizinho ou o tio ou o pai lhes tocam de uma maneira assim ou assado. É outra realidade, à parte.
Algumas das ideias que levou, abandonou- as?
Sim, logo na primeira semana. Não é possível ensinar nada a alguém sem estarmos primeiro dispostos a aprender. Acho que é um meio termo. Se cedermos completamente, aquilo vai ficar sempre afundado em conceitos que eles acham que são normais: a corrupção, uma sociedade altamente patriarcal, em que as mulheres e as crianças valem menos do que os animais. Não posso falar de África, só do Quénia e daquela favela onde vivi: são décadas e décadas de atraso, correspondem a anos-luz de distância da compreensão que nós temos do que é uma sociedade, uma família, o respeito, todas essas coisas. Portanto, claro que sim, tive de abandonar algumas ideias, quando fui, mas acho que é importante encontrar um meio termo.
São projectos que também mudam a vida de quem vai.
Mais a de quem vai do que a de quem fica. Sem dúvida.
O que mudou no seu caso?
Tanta coisa. Esta ideia de que somos o centrinho do mundo, que as nossas ideias são muito válidas e que os outros povos têm de aprender connosco… não é nada disso, há coisas que funcionam super bem lá: a ausência de julgamento, a maneira como eles são super desenrascados e felizes. Isso também vi na América do Sul. Não significa que sejam mais pobrezinhos, se calhar, até são mais ricos de espírito. Fiquei com muita vontade, essencialmente, de conhecer outras culturas.
Quando vem do Quénia, organiza-se de maneira a viajar. Passou muito tempo seguido fora?
Oito meses, no ano passado, sozinha. Viajar sozinha foi uma opção porque acho que ficamos mais predispostos a tudo aquilo que nos acontece, a conhecer pessoas, a experiências novas.
Qual foi a situação mais insólita em que se viu?
Foi uma viagem de autocarro, no Brasil, das cataratas do Iguaçu até ao Rio de Janeiro, uma viagem que ia demorar 20, 21 horas. Assim que entrei, um brasileiro levantou-se e disse: “Quero ver o dinheiro na mão e ninguém chora”. O autocarro tinha sido carjacked [roubado] por traficantes para entrar no Brasil com mercadoria que vem do Paraguai: electrodomésticos, material de som, tudo e mais alguma coisa. A viagem demorou 36 horas. Eu não sabia o que se estava a passar, havia gente a gritar e a chorar, não tinha rede no telefone, ninguém sabia onde eu estava.
Como é que acabou?
Chegámos ao Rio de Janeiro, saí, de repente começaram a juntar-se os passageiros, queriam fazer uma reclamação, dei o meu nome e saí dali.
Este ano marca o seu regresso ao teatro. Com que sentimentos e sensações?
Estou afastada da televisão há cinco anos e já não fazia teatro há algum tempo, também. Estava com muita vontade de representar. Os actores – pelo menos, falo por mim – acabam por guardar sensações, emoções, experiências para depois usar quando se está a trabalhar. Os actores trabalham com as emoções, é a nossa ferramenta. E quando fico muito tempo sem representar, fico muito cheia de emoções e com muita sede e muita ânsia de representar e deitar coisas cá para fora. Então, este regresso foi bom, porque era uma coisa muito leve, uma revista, cabaret, musical, e foi muito interessante, para mim, porque era um género que nunca estudei, nunca tinha feito, e era com o José Raposo e a Vera Mónica, pessoas que andam aqui há anos. Foi muito interessante e também um banho de humildade.
Saiu de casa aos 16 anos para ser actriz. Já consegue dizer se nasceu actriz ou se se tornou actriz depois da formação que fez a partir dessa idade?
Não sei responder a essa questão, mas dificilmente, com tanta garra, me metia a fazer outras coisas. Quando me perguntavam o que queria ser, dizia várias coisas, muito diferentes. Mas, no fundo, queria representar vários papéis e contar histórias. É o que mais interessa às pessoas. Percebi isso quando viajei. As pessoas apaixonam-se é pelas histórias, querem ouvir vidas diferentes das delas e ver coisas diferentes da sua realidade.
O que a levava a deixar tudo para trás outra vez?
É só haver o gatilho certo e eu vou. Neste momento, a Ásia está a puxar- -me muito, estou com muita, muita vontade de ir. E tentar conciliar as viagens – viver e trabalhar lá durante uns meses – e os projecto sociais. Por outro lado, sinto que preciso de me estabelecer aqui. As pessoas só mudam de vida por duas razões: porque ‘fritam’ ou porque vão atrás do amor. Neste momento, não seria nem uma nem outra. Já fritei e também já saí por amor. O que me levava, era esta necessidade de conhecer outros sítios e não estagnar. Aprendo muito mais um mês lá fora do que ficando aqui a trabalhar. Sou muito mais feliz. E vai acontecer.