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Home Opinião

Dicionário improvisado (III)

Paulo Kellerman, escritor por Paulo Kellerman, escritor
Fevereiro 24, 2022
em Opinião
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Contaminação
Caminho na margem esquerda do rio. É nessa margem que tenho de caminhar se quero ir; a margem direita serve apenas para vir. Avanço, rodeado de pessoas que querem ir; por vezes, olho para lá do rio e observo as pessoas que estão a vir. Não há mistura, não há contaminação. E se de repente aparecer um extraterrestre que não conhece as regras: conseguirá encontrar diferenças na expressão fisionómica de quem vai e de quem vem? Haverá diferença? Apresso o passo para fugir à questão que se aproxima; mas ela apanha-me na mesma. Como se distingue o ir do vir?

Crescimento
Todos os dias pela manhã trazia o seu banquinho e sentava-se a olhar as plantas. Olhava com atenção e interesse, raramente adormecia. Mas nunca as via crescer, da mesma forma que não via o tempo passar. No entanto, quando chegava na manhã seguinte, as plantas tinham crescido; e o tempo tinha passado.

Distância
A árvore bem se estica mas não consegue tocar as nuvens. E entristece quando pensa que passará a vida a vê-las passar.

Egoísmo
Havia uma folha caída na rua. Quem passava, olhava-a (era uma folha muito bonita) e perguntava: como fará para regressar à sua árvore? Mas ninguém se lembrava de a ajudar.

Medo
Tenho medo que o tempo passe e eu fique para trás. Tenho medo que passem vinte anos e os meus pensamentos se mantenham iguais ao que são hoje. Tenho medo que daqui vinte anos ainda tenha este medo.

Porta
O que sentirá uma porta quando lhe batem? Talvez pense: porque nunca me visitam, porque se limitam a passar através de mim?

Possibilidade
Por vezes, pensa coisas curiosas. Por exemplo: será que os anjos param para se abraçar quando se cruzam nos céus? E pensa isto enquanto se desvia das pessoas com quem se cruza no passeio.

Prisão
Todos os dias espreitava pela janela e perguntava-se: se eu fosse um pássaro, hoje voaria até onde? Depois, vestia o fato e seguia para o escritório. O fato estava sempre impecável.

Raiz
O céu olhava lá para baixo, observando longamente as árvores; e interrogava-se: onde estão as minhas raízes?

Regresso
Passo após passo, caminho em frente. Mesmo que de repente decida voltar para trás, continuarei a caminhar em frente; regressar ao local de origem é uma forma de caminhar em frente. Mas avançar em contramão é a única forma de encarar as outras pessoas nos olhos.

Saudade
De que falam duas nuvens quando se encontram ao fim do dia, num canto tranquilo do céu? Talvez das saudades que têm do mar.

 

Etiquetas: opiniãoPaulo Kellerman
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