Vivemos na era da distopia. A etimologia da palavra recorda-nos Thomas More, como o autor que cunhou o conceito de utopia. A sua génese é grega e resulta da junção de "ou" – "não" – com o "topos" – "lugar".
O significado exacto seria, então, “lugar nenhum”. Todavia, o seu percursor e seguidores utilizavam o termo para designar um lugar onde tudo funciona perfeitamente. Distopia, porém, é a união de "dys" – "mau, ruim" com "topos" – "lugar". E reflecte o conceito filosófico oposto ao de utopia.
Gregg Webber e Stuart Mill usaram pela primeira vez esta categoria num discurso do parlamento britânico, em 1868. Ainda que remonte a essa época, não poderia ser mais actual esta concepção do mundo e das suas globalidades viciosas, pretensamente conectivas e facilitadoras.
Ainda que ambas as palavras definam futuros imaginados, ficcionais e idealistas, as utopias são pautadas pela fé na justiça, no bem comum e no culminar das misérias humanas. Já as distopias, patenteiam sociedades em que as elites no poder, deliberadamente, subvertem a justiça a favor dos seus interesses.
Ainda que a existência humana e as suas genuínas expressões artísticas e intelectuais, mas também mundividentes, nos relevem esses conceitos bem reais e filosóficos, as sociedades contemporâneas, por intermédio do uso massivo da tecnologia e comunicação, relativizam o conceito de justiça e a crença na bondade humana.
De resto, exploram o instinto básico da saciedade até à exaustão, sem que o controlo seja accionado, atendendo ao modo como actua e condiciona o cérebro humano. Os medos e as esperanças universais, a par do complexo emocional que mobiliza e causa impacto nos indivíduos, possibilitam uma reflexão difusa sobre a vida e o futuro.
[LER_MAIS] As distopias, além da definição de “um lugar ruim”, sugerem uma estrutura social, bem pior do que a existente no presente.
Contudo, são em si mesmas a cruel expressão da actualidade. Se observamos as condições sociais do mundo actual, podemos encará-las como a distopia de um passado anterior, cuja memória nos mantém alerta, com o propósito de sobreviver, ainda que com um ilusório poder descartável que nos concedeu a técnica. E essa subserviência é muito mais que orgânica, é acéfala.
O pensamento reflexivo desvanece-se na sofreguidão da acessibilidade cibernética e no carácter intuitivo da tecnologia, criada para pretensas necessidades inexistentes na filogenia da espécie humana.
Um indivíduo que viva conscientemente o momento presente, aturdido nessa massificação e torpor, jamais irá deixar de pensar que é anulado, reduzido à ilusão de que está em ligação permanente com um universo distópico.
Ao ser exposto às injustiças, ao terror promovido pelas ditaduras, à exibição gratuita da malícia pelos seus pares, ao pavor das consequências que eclodem no inverso do desenvolvimento técnico e científico, é bem provável que pressinta que num futuro concreto irá submergir a um fenómeno de extinção da humanidade, coarctada de pensamento divergente.
Isto faz-nos reversar sobre o processo de desenvolvimento humano, sobre as expectativas das diferentes sociedades e dos seus contextos educacionais, relacionais, cívicos ou, se preferirmos, civilizacionais.
Psicólogo clínico