"Recordo-me de em pequena a minha mãe chamar-me vaidosa e petulante porque passava horas em frente ao espelho”. Certamente à procura de um espelho reflector não deformador de si e nem das suas qualidades, que a amasse e respeitasse como uma menina única e exclusiva, merecedora de existir.
Hoje Maria (nome fictício) é uma mulher adulta, pesa próximo de 100 quilos e não consegue ver-se ao espelho, nem olhar o seu corpo que tende constantemente a deformar. Procura-me porque tem consciência que algo não vai bem consigo, nem com o seu comportamento alimentar.
Sente uma profunda tristeza, muita desconfiança e ansiedade quando olha para o mundo. Tem dificuldades nos relacionamentos sociais, profissionais e também na vida íntima e afectiva. Vive uma auto-depreciação constante e sente muita vergonha, que agora quer procurar entender.
O desenvolvimento humano não é um processo apenas biologicamente determinado e passível de ser expresso só em quilogramas, centímetros ou percentis. Somos seres de cultura e activos na procura da interacção com o outro desde bebés e isso conta, conta muito.
Esta recordação da Maria levou-me ao pensamento de Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês de quem eu gosto muito, quando diz que o bebé ao olhar-se no espelho do rosto materno vê-se a si próprio: “quando olho sou visto, logo existo… posso agora permitir-me olhar e ver”.
Na sua perspectiva, o nosso primeiro espelho é o rosto da mãe e/ou figura cuidadora, o seu olhar, o seu sorriso, as suas expressões faciais. Por isso, a mãe ou outro “ser de carne e osso” que desempenhe a função materna tem uma grande responsabilidade.
Uma vez sendo o espelho do seu bebé, ela tanto pode reflectir o que ele realmente é, como o que ela é ou imagina ser. As suas projecções podem distorcer a sua relação com o bebé, criando disrupções e comprometendo as suas experiências relacionais precoces possíveis, porque a visão que esta tem dos potenciais do seu filho tornam-se parte importante das representações que ele vai ter de si próprio.
[LER_MAIS] Assim, quando uma menina ou um menino investiga o seu rosto ao espelho e sorri para a sua própria imagem reflectida ou procura o rosto da mãe ou do pai que o sustenta nos braços (por volta dos 6 a 18 meses, no chamado estádio espelho), ela ou ele está a procurar a tranquilidade de sentir que a imagem materna se encontra ali, que a mãe e/ou figura cuidadora a vê e se encontra disponível, que há amor incondicional dos seus cuidadores.
Do outro lado do espelho é também o título da exposição que visitei com a minha irmã na Fundação Calouste Gulbenkian, onde me foi possível revisitar algumas destas considerações. Tratava-se de uma exposição temática que teve o espelho como foco principal e que pretendeu demonstrar a sua presença polissémica na iconografia da arte europeia, sobretudo na pintura, mas também na escultura, na arte do livro, na fotografia e no cinema.
Numa das salas podíamos assistir a um pequeno filme de um menino e do seu vislumbre quando via a sua imagem ao espelho (o seu eu) e interagia com o rosto do pai que o filmava. E este vislumbre também proporciona um modo de olhar a psicoterapia. Poder devolver à pessoa aquilo que nos traz, que sente que é.
E aqui reside talvez grande parte do trabalho a fazer com a Maria. E se o fizer suficientemente bem, Maria descobrirá o seu próprio eu e será capaz de existir e sentir-se real, sem se angustiar tanto, ganhando liberdade para ser capaz de pensar em si de forma positiva, coerente e tranquila.
Isto porque nas palavras de Winnicott, “sentir-se real é mais do que existir: é descobrir um modo de existir como si mesmo, relacionar-se com os demais como si mesmo e ter um eu (self) para o qual retirar-se para relaxar”, sempre que necessário e sem nos abalarmos muito, acrescento eu.
*Psicóloga clínica e psicoterapeuta