Que papel cabe aos museus numa sociedade que vibra, sobretudo, com o avanço tecnológico?
A transformação digital e a tecnologia são palavras que entraram definitivamente no mundo dos museus, quer a nível interno, porque permitiram novas ferramentas que agilizam o registo, a troca de informações e a salvaguarda das colecções, quer, sobretudo, ao nível externo, porque permitem outras formas de comunicação, muito mais próximas, muito mais céleres, muito mais criativas, não só entre os profissionais dos museus, mas com o público em geral, e, portanto, podemos captar um público muito mais diverso espacialmente, muito mais amplo. Quando comunicamos através da internet, o nosso espectro de público é mundial. Por outro lado, a tecnologia tem motivado reflexão e obras de arte que já só existem no domínio virtual, curadorias específicas, e os museus têm tido um papel bastante activo nesse processo. Ao nível das exposições, o avanço tecnológico mudou radicalmente a forma como os museus apresentam as suas colecções e como expõem.
Revê-se na ideia de que os museus devem ser espaços vivos e conectados com o exterior?
Hoje convida-se muito mais à participação, à interacção, ao estar no museu de uma forma significativa, que não seja meramente um passar pelas salas, mas que o visitante participe na descoberta do museu e do que o museu tem para propôr. Para mim, o museu é contemporaneidade, não é passado. Deve motivar a reflexão das pessoas sobre a sua própria realidade. Os museus hoje, é este o meu entendimento, não estão à espera do visitante, vão ao encontro, chamam, apelam, ultrapassam as suas paredes.
Nos últimos anos, o Museu Dr. Joaquim Manso, que coordenou, beneficiou do aumento de visibilidade da Nazaré proporcionado, por exemplo, pelo surf?
Sim. Toda a Nazaré beneficiou deste boom trazido pelo surf das ondas grandes. Nós estamos a assistir nesta última década a uma transformação da Nazaré em função de uma maior globalização. O turismo não é novo na Nazaré, a Nazaré lida com esta realidade desde finais do século XIX, foi desde sempre uma das praias mais procuradas. Em meados do século XX era paragem obrigatória para qualquer turista que vinha ao País. O que creio que é novo é a amplitude, é a diversidade da tipologia do turista. É um fenómeno em constante crescimento que pode trazer alguns perigos, como a massificação ou uma modernização que de alguma maneira possa desgarrar tradições que são imagem de marca da Nazaré. Mas o museu, assim como em geral a Nazaré, beneficiou deste aumento de visitantes e da diversidade das suas nacionalidades, dos seus interesses. E motivou-nos, inclusivamente, a uma reflexão sobre o que é que há-de ser um museu da Nazaré, poque não nos devemos ater apenas a um discurso passadista, a um discurso que fique no passado. Hoje, a relação da Nazaré com o mar faz-se também por outras vias, para além da pesca, através do turismo e sobretudo do surf. Todas estas novas realidades socioeconómicas devem ser espelhadas no Museu da Nazaré e na programação que o mesmo faz e no modo como se apresenta.
Acredita que as novas gerações de turistas vão manter a procura pelo conhecimento da tradição?
Vão continuar e eu sentia isso quando estava no Museu e na Nazaré. Por um lado, há quem tenha vindo nos anos 70, falando em público estrangeiro, que agora regressa à Nazaré e continua à procura daquela imagem. E é muitas vezes no museu que a encontra. Por outro lado, a Nazaré tem essa genuinidade que a diferencia das outras praias, ainda. Para além da modernidade que pode ter, deste surf das ondas grandes, continua a ter muito presente ao nível comunitário essas tradições. Não só porque ainda há uma dezena de senhoras que se vestem no seu dia a dia da forma tradicional, como por toda uma série de manifestações festivas, religiosas, de vivências de rua, que ainda estão muito presentes. O turista procura, no meu entender, cada vez mais a proximidade, a individualidade, aquilo que permanece como tradição. E a Nazaré tem muito para oferecer neste domínio. Portanto, penso que as novas gerações de turistas vão continuar a procurar a Nazaré não apenas pelas ondas grandes mas também pelas suas tradições e pelo modo de ser das pessoas, que é também património.
Está a começar uma nova etapa, como directora do Museu Nacional do Traje. Com que objectivos?
Sem dúvida toda a experiência que adquiri na Nazaré, a importância que o traje tem ainda hoje na Nazaré, influenciou esta minha caminhada no mundo dos museus e eu gostaria de contribuir para que o Museu Nacional do Traje fosse um museu de referência em Portugal e ao nível internacional na promoção do conhecimento, da conservação e da divulgação do traje, que é um traje sobretudo civil, desde a sua dimensão histórica ate à contemporaneidade. Um dos objectivos do meu projecto, e espero consegui-lo, no Museu Nacional do Traje, é mostrar que o museu pode ter um papel mais ambicioso, mais activo na sociedade, em prol de uma mudança social mais positiva. Que o museu seja relevante, [que tenha] impacto nessa mudança social, porque o traje potencia formas de diálogo, potencia formas de expressão, que colocam o Museu Nacional do Traje numa posição aliciante em termos da sua programação, nestas questões muito actuais da diversidade cultural, social, étnica, promovendo o encontro, as dialécticas, que, de alguma forma, contrariem o desenraizamento que sentimos na sociedade actual. Essa será uma das tónicas da minha actuação.
Ainda é possível observar e estudar uma comunidade através do que traz vestido?
Continua a ter sentido falar nessa perspetiva mais identitária, de comunidade, de país e de região, e de tradições, nos chamados trajes tradicionais, que estão sobretudo associados a eventos turísticos, folclóricos e históricos. As pessoas produziam esses trajes porque eles eram funcionais, eram adaptados às funções muitos específicas que desempenhavam, com tecidos, com técnicas artesanais de produção muito ligadas a um determinado território. Mas, podemos pensar também no traje, no vestir, na moda, com a sua diversidade. Que vai desde uma identidade individual que é uma forma de cada um se afirmar e se expressar, que pode contribuir, ou não, para uma maior integração social ou para criar sentidos de pertença de grupo. E não só nos jovens. Sabemos que as pessoas, em geral, seguem muito os chamados influencers, seguem as tendências, querem vestir-se como os seus heróis. Temos uma multiplicidade de grupos dentro de uma cidade como é a capital do País, que é Lisboa, portanto, o traje continua a permitir estudar essas comunidades e o modo como a comunidade, como esses grupos, se revêem em si próprios. Voltando à Nazaré, o facto de haver ainda um dezena de senhoras que vestem os seus trajes no dia a dia levanta questões antropológicas, sociológicas e identitárias muito interessantes sobre a Nazaré actual, uma Nazaré global.