Duas queixas-crime de particulares contra o Estado português, relacionadas com o incêndio do Pinhal de Leiria em 2017, estão a ser investigadas pelo Ministério Público.
Numa delas, 11 proprietários florestais consideram que a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil foi negligente.
Na outra, um habitante do concelho da Marinha Grande acusa os responsáveis pela gestão da Mata Nacional de administração danosa, omissão de auxílio, dano qualificado e ofensa à integridade física por negligência.
Nesta última, há um novo aditamento, com informação sobre proveitos e investimentos: nos sete anos anteriores ao incêndio de 2017, o ICNF – Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas recebeu 8,3 milhões de euros da venda de material lenhoso e resina do Pinhal de Leiria e gastou 214 mil euros em serviços externos, conforme adiantou o semanário Região de Leiria.
Ou seja, além das acções desenvolvidas com recursos humanos e equipamentos próprios, cujo valor não se encontra mensurado por não existir centro de custos associado à Mata Nacional, e de um protocolo com o Exército em 2014 para abertura de faixas de gestão de combustível, reparação de estradas e vigilância, também de montante desconhecido, foram contratados a terceiros os seguintes projectos: beneficiação de povoamentos em 2010 (cerca de 100 mil euros) e intervenção em talhões em 2012 (executado parcialmente, com uma despesa de 114 mil euros, num concurso público adjudicado pelo triplo).
Estes dados não estavam disponíveis para o público e só chegaram a Alexandre Franco, que é o autor da queixa-crime por administração danosa, depois de anos a enviar emails.
Uma reclamação por escrito e o recurso à Provedora de Justiça (em Julho de 2018) obrigaram o ICNF a responder, num documento onde explica, ainda, que os leilões de material lenhoso proveniente do incêndio de 2017 na Mata Nacional localizada no concelho da Marinha Grande renderam, em 2017, 2018 e 2019, aproximadamente 14,5 milhões de euros.
O que já se sabia, é que o ICNF obteve, em média, 2 milhões de euros por ano no Pinhal de Leiria, entre 2000 e 2009: as receitas totalizaram 20,9 milhões de euros, os investimentos 1,8 milhões.
“Estamos a falar de uma mata altamente lucrativa”, afirma Alexandre Franco ao JORNAL DE LEIRIA. “E temos um organismo que está legalmente incumbido de cuidar dela, conservá-la, e que não fez nada disto. Apenas se limitou a fazer hastas públicas a vender madeira”.
Para Alexandre Franco, que no dia 15 de Outubro de 2017 foi forçado a sair de casa com a família para fugir às chamas, “há uma conduta que merece ser investigada criminalmente”, porque “alguém não fez o papel” que legalmente lhe está atribuído.
“E as pessoas, no meu ponto de vista, que ocupam cargos públicos, como, por exemplo, o conselho directivo do ICNF, têm de ter consciência que os actos que praticam, até, muitas vezes, os actos que não praticam, como é o caso, devem ser sancionados e devem ser sindicados”, sublinha.
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O processo no DIAP – Departamento de Investigação e Acção Penal de Leiria, por crimes de administração danosa, omissão de auxílio, dano qualificado e ofensa à integridade física por negligência, visa os responsáveis e organismos incumbidos da gestão da Mata Nacional de Leiria desde 2003. Porque em 2003 ocorreu outro grande incêndio – embora de menores dimensões do que o de 2017 – que muitos consideram o primeiro alerta sobre o que podia acontecer. Os avisos chegaram à Autoridade Florestal Nacional (primeiro) e ao ICNF (depois) ao longo dos anos.
Alexandre Franco alega que, fruto de uma “gestão negligente e incompetente”, no dia 15 de Outubro de 2017 a Mata Nacional de Leiria estava “votada ao abandono”, depois de anos de “desleixo” e “desinvestimento em limpeza, conservação, manutenção e ordenamento”, que criaram “um verdadeiro barril de pólvora”, com enorme “carga térmica”.
Da queixa-crime faz parte um relatório elaborado pela Universidade de Coimbra, sob coordenação de Domingos Xavier Viegas. E o Plano de Gestão Florestal aprovado pelo ICNF em 2010 para o Pinhal de Leiria, que previa faixas de gestão de combustível, mas nunca executado.
Em 2017, o incêndio “começa a pouco menos de um quilómetro do primeiro aceiro que devia ter sido construído e que estava previsto no Plano de Gestão de Florestal”, diz Alexandre Franco. “Estamos a falar de uma faixa de 200 a 300 metros limpa. Se esse primeiro aceiro estivesse construído, os meios de combate teriam sido melhor posicionados e muito provavelmente o fogo tinha sido debelado logo ali”.
No final, as chamas atingiram 86% do Pinhal de Leiria, invadiram outras matas nacionais e destruíram casas e empresas, além de floresta privada.
Noutra queixa-crime, 11 proprietários de pinhais e eucaliptais nos concelhos de Leiria e Pombal querem responsabilizar a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil. Criticam a organização do dispositivo durante a ocorrência, mas, também, antes, porque a previsão meteorológica para 15 de Outubro indiciava condições anormais, com temperaturas elevadas, baixa humidade e vento forte.
“Em vez de ter feito ampliação de meios”, o Estado “reduziu para metade os efectivos disponíveis”, refere José Pedrosa Pacheco, que representa os 11 proprietários florestais. “Consideramos que houve uma situação pelo menos negligente não só na mobilização dos meios como na prevenção”, o que “originou que os bombeiros se viram numa situação de completa impotência no combate”.
Os queixosos “já foram ouvidos” e a investigação está “perto do fim”, acredita o advogado.