Querido diário, não há uma maneira simples de te confidenciar isto, por isso, aqui vai: ultimamente tenho-me sentido uma Maria Leal. É verdade. Não, não é por ter um ar perdido e aluado. Não, não é por dançar com dois pés esquerdos isentos de qualquer ritmo enfiados numas botas ortopédicas uns números abaixo, nem é, tão pouco, por andar sempre semitonado em relação a qualquer melodia. Predicados que, infelizmente, também cumpro com distinção.
É por estar num entroncamento sem fim. Não é no Entroncamento a terra dos fenómenos, embora também viva rodeado de alguma surrealidade. Também não é exactamente no entroncamento onde a Maria Leal passa os dias, sob a batida controladora do DJ Azeite. É um entroncamento existencial. Passo a explicar. Infelizmente, por minha inaptidão, a minha síndrome de Miss Mundo terá de usar um açaime para o resto dos meus dias, porque já não vou conseguir mudar o mundo com o meu trabalho.
É deprimente, mas tenho de assumir ou assimilar, que a minha carreira não passará muito mais daqui. Se assim é, para que raio tenho de trabalhar tanto? Porque raio tenho de adormecer de portátil na genitália? Porque é que ando sempre sem tempo? Esgrouviado, despenteado, atrasado e arreliado. Feito uma meretriz que não diz que não a nada mesmo que, posteriormente, gaste quantidades loucas de pomada para as feridas.
Para ganhar mais dinheiro? Como? Se todos os meses a minha conta, ao dia 15, parece o tacho da sopa dos pobres depois do almoço. Para dar um futuro maravilhoso aos miúdos? Será isso possível? Se está comprovado que o que os nossos filhos precisam é da nossa presença, daquela presença em que nós, pais, estamos realmente presentes, e não de futilidades para desembrulhar.
Eu sei que sou só eu nesta posição, entalado e de cócoras, que vocês ganham todos rios de euros e que estão felicíssimos com a vossa maravilhosa e imprescindível carreira. Quero aqui declarar que sou contra o trabalho. E quero apresentar a minha pré-inscrição para aquele modelo de sociedade futurista onde o trabalho será opcional. Não duvidem, não bufem blasfémias, que eu já lancei os búzios e li no azeite, chegará o dia em que trabalhar vai ser só para quem quiser e eu, não quero. O trabalho é sobrevalorizado. Eu quero é viver, isso é que já ouvi dizer ser inesquecível. Porque só se anda cá uma vez, a não ser que sejas esotérico, nesse caso andas cá uma carrada de vezes, não nos podemos desperdiçar. Tudo o que abrande o sangue nas minhas veias, ou que me sugue vida em demasia é para abolir.
Enquanto não for possível, admito que a solução seja trabalhar o estritamente necessário para receber o dinheiro suficiente para que vivamos tranquilos, à margem da máquina centrifugadora em que os tempos se tornaram. Provavelmente não conseguirei, como tantas outras coisas que gostaria de cumprir, mas a ideia ninguém me a tira.