É a maior associação de juventude em Portugal, com cerca de 72 mil membros. O Corpo Nacional de Escutas (CNE) comemora, este sábado, dia 27, o seu centenário, pretexto para o JORNAL DE LEIRIA recolher testemunhos de várias personalidades da região que viveram no escutismo momentos “inesquecíveis” e experiências marcantes.
É caso do presidente da Associação Empresarial da Região de Leiria (Nerlei) e administrador da inCentea, António Poças, de Nuno Fonseca, fundador da Sound Particles, startup nascida em Leiria que trabalha com Hollywood, do psicólogo e poeta Paulo José Costa, da vice-presidente do Politécnico de Leiria, Graça Poças Santos, do presidente da Câmara de Pombal, Pedro Pimpão, do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Francisco André, e da líder da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC), Isabel Damasceno.
Com vivências mais ou menos longas no escutismo, todos partilham a ideia de que este é “uma escola de vida”, onde se promovem valores “fundamentais” na formação de crianças e jovens, como o espírito de interajuda, a solidariedade e a capacidade de trabalhar em equipa ou de superar desafios.
Quase 35 anos no escutismo
António Poças deixou o escutismo há 20 anos, mas fala com a mesma paixão do movimento como quando este era a sua vida. “Não era um passatempo, mas sim um modo de vida”, assume o presidente da Nerlei, que entrou para o Agrupamento 127, da Sé de Leiria, em 1966, com seis anos.
Antes, o avô e o pai tinham integrado um dos primeiros três grupos criados na região, no final da década de 20. “Havia um em Leiria e duas alcateias: no Olival, em Ourém, e outra no Reguengo do Fétal, na Batalha. O meu avô foi chefe neste último e o meu pai lobito”, conta. Foi no agrupamento 127, constituído em 1960, que António Poças fez todo o seu percurso como escuteiro, de lobito a caminheiro, assumindo depois funções de dirigente e de chefe regional, num total de 35 anos ligado ao movimento.
“As vivências que tive no escutismo definiram muito do que sou como pessoa”, assume o empresário, destacando como mais marcante o facto de este ser “um espaço para poder fazer coisas”, para “experimentar” e para “arriscar”. “É um instrumento muito poderoso para estimular o trabalho em grupo, com autonomia”, acrescenta.
Este aspecto é também destacado por Nuno Fonseca, fundador da Sound Particles. Além de desenvolver a capacidade de trabalhar em equipa, o empresário aponta o escutismo como um espaço que estimula a autonomia e a capacidade de liderança, de debate e de partilha de ideias.
“O escutismo puxa por competências que, normalmente, não são trabalhadas no ensino regular”, afirma Nuno Fonseca, que, dos seis aos 21 anos, integrou o Agrupamento dos Marrazes. Entre as vivências marcantes, recorda a participação numa actividade internacional na Suécia, em 1996, pela experiência de atravessar a Europa de autocarro e pelo “intercâmbio como diferentes culturas”.
Há ainda a participação no grupo Ipsis Verbis, que criou com outros companheiros e que fazia a animação musical de actividades do CNE na região. “Algumas das músicas que compusemos continuam a ser cantadas”, diz, com um misto de saudade e de orgulho.
Acampamento em base naval
Também de experiências marcantes foram feitas as mais de três décadas que António Poças dedicou ao escutismo. No desfiar de memórias, recorda o pós-25 de Abril, um período “confuso” para o movimento, em que o Agrupamento da Sé acabou por ficar sob a responsabilidade de “quatro ou cinco jovens”, incluindo o próprio.
“Hoje, tenho a noção da quantidade de asneiras que fizemos, mas foi uma experiência única”, reconhece o empresário. Nessa fase, fez também o seu primeiro acampamento mundial (Jamboree) na Noruega.
“Para um miúdo de 15 anos, a fazer a sua primeira viagem de avião, é marcante”, diz António Poças, que participou depois noutras iniciativas do género, algumas como chefe do contingente português, como aconteceu na Tailândia, no final de 2002, três meses depois do 11 de Setembro, e que teve lugar numa base naval, sob fortes medidas de segurança. “Não viajámos juntos e os EUA, por exemplo, tinham um navio de guerra na entrada da baía onde decorria o acampamento.”
Mais tranquilos, mas também com um certo nível de risco, foram alguns dos episódios vividos por Paulo José Costa durante os anos que esteve no escutismo e que envolveram “noites de sobrevivência” na Serra de Aire, sozinhos e apenas com uma carta cartográ – ca, e dormidas em grutas.
Numa dessa actividades, subiram às Ventas do Diabo (cavidades existentes em Mira de Aire), para pernoitar. Ao chegarem, já noite, ouviram “um barulho metálico, muito sincopado”. “Estávamos sem chefias. Alguém se encheu de coragem e foi ver o que se passava. Era uma goteira a cair em cima de uma lata.”
“As experiências de superação e de aprendizagem acrescentam valor, ajudam a construir autonomia e independência”, afirma o psicólogo, salientando ainda a importância das actividades de dinamização de grupo desenvolvidas no escutismo que o têm ajudado no seu desempenho profissional.
“Devo muito do que sou, em termos pessoais e sociais, de capacidade de trabalho em equipa e de assumir alguma liderança, ao escutismo”, confessa Paulo Costa, revelando que foi no escutismo que conheceu alguns dos seus melhores amigos. No caso de Nuno Fonseca e de António Poças, além de amigos, também conheceram as esposas no escutismo.
Actual presidente da Câmara de Pombal, Pedro Pimpão foi escuteiro e dirigente durante quase 20 anos. “Foi muito importante para a minha vida. Uma escola de vida”, reconhece, destacando, além da transmissão de valores como a solidariedade e a ética, o espírito de entreajuda. “O sistema de patrulhas, gizado por Baden Powell [fundador do escutismo] é muito importante para estimular o trabalho em equipa para, em conjunto, alcançarmos objectivos comuns”, realça o autarca, cujos filhos, de dez e sete anos, já integram, “por vontade própria”, o Agrupamento 674 de Pombal.
“É uma experiência que aconselho a qualquer criança ou jovem. Quem passa pelo movimento, tem propensão a ser um cidadão mais activo e comprometido com a sua comunidade”, afirma Pedro Pimpão, salientando ainda a ligação do escutismo à natureza.
Essa relação do movimento com a ecologia foi um dos aspectos que mais marcou Isabel Damasceno, antiga presidente da Câmara de Leiria, que integrou o escutismo no início da década de 70, num tempo em que preservação da natureza “não estava na ordem do dia”. “Tinha 13 ou 14 anos quando entrei. Recordo-me das actividades ao ar livre e do debate de ideias”, refere a presidente da CCDRC, que considera o escutismo “uma importante escola de transmissão de valores, como a solidariedade, que ajuda a formar pensamento”.
Do álbum de memórias, recorda um acampamento em Seiça, no concelho de Ourém. Anos mais tarde, já como autarca, soube que nessa actividade esteve Carlos André, antigo governador civil de Leiria, que também foi escuteiro e que passou esse gosto ao filho Francisco André, actual secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros.
Uma escola de vida
Ao JORNAL DE LEIRIA, Francisco André, nascido em Leiria em 1975, garante que a sua participação no movimento escutista foi “fundamental” para a sua formação cívica e pessoal. “Incutiu-me valores e princípios que tento respeitar na minha actividade pública, que têm que ver com o espírito de entreajuda, de ajuda ao próximo, de protecção do nosso património e da natureza”, afirma.
A experiência, de “relação próxima com a natureza”, permitiu-lhe ainda conhecer o distrito e a região, nomeadamente os seus patrimónios “natural, arquitectónico, cultural e espiritual”.
“Foram anos tão intensos que até me parece que estive muitos anos no movimento: uma escola de vida e de formação integral, do ponto de vista humano, espiritual e de cidadania activa”, assume Graça Poças Santos, vice-presidente do Politécnico de Leiria, que pertenceu ao Agrupamento 516, no Bombarral, entre os 15 e os 19 anos.
Desse tempo, a docente recorda “com muita saudade”, as celebrações ao ar livre, como “os fogos de conselho com fogueiras, os acampamentos em pinhais, os acantonamentos junto à praia”. “Estudávamos temas, debatíamos ideias e rezávamos”, acrescenta a docente, que diz que foi no escutismo que confirmou a sua “vocação de mãe”, quando foi ‘Aquêlà’, com a responsabilidade de acompanhar os lobitos (dos seis aos dez anos).
“Efectivamente, BP [Baden Powell] foi um homem à frente no seu tempo e bem desejaria, como ele propôs, deixar o mundo um bocadinho melhor do que o encontrei”, remata a docente.