Tem dores menstruais incapacitantes? Há sintomas dolorosos em diferentes locais do corpo que surgem coincidentemente sempre que está menstruada e todos lhe dizem que é normal? Se é demasiado doloroso procure ajuda especializada e despiste uma situação de endometriose.
Apesar desta doença crónica afectar uma em cada dez mulheres, o diagnóstico é quase sempre tardio, uma vez que quer a classe médica quer as próprias pacientes desvalorizam, muitas vezes, as dores da menstruação, considerando-as como algo normal. Idas à urgência, queixas frequentes, bateria de exames com resultados normais deixam estas mulheres à beira de um ataque de nervos. Desesperam por um diagnóstico.
Ana Parreira é nutricionista e sofre de endometriose. Dedica-se a ajudar as mulheres a viver com a doença da melhor forma através de uma alimentação personalizada. Até saber o que tinha passou vários anos a sofrer.
“Já se ouve falar cada vez mais da endometriose, mas o diagnóstico ainda é muito tardio e não é só em Portugal, também se passa o mesmo a nível mundial. Demora entre sete a dez anos. Os médicos deveriam estar um bocadinho mais atentos e ouvir mais as queixas das pacientes. Há que acabar com o mito de que ter dores menstruais é normal, o que não é quando se torna incapacitante”, sublinha.
E foi por isso que passou: dores incapacitantes que várias vezes a levaram às urgências do hospital. “Diziam sempre que não tinha nada e que poderia ser psicológico. Ouvir isto é muito complicado. Mesmo dos familiares. A minha mãe chegava a dizer-me: já fizeste exames a tudo e não dá nada. Sei que não é por mal, mas não é fácil.”
As dores começaram por volta dos 22 anos. A toma do anti-concepcional amenizou um pouco os sintomas, mas Ana Parreira considerava uma estranha coincidência os sintomas surgirem na zona do diafragma sempre que menstruava. “Quando parei a toma da pílula as dores tornaram-se muito fortes. O ginecologista dizia sempre que estava tudo normal”, revela.
João Sequeira Alves, ginecologista no Hospital da Luz especializado nesta doença, destaca precisamente que a “massificação da utilização da pílula” acaba por mascarar um pouco a doença. “Muitas vezes, é quando a mulher decide engravidar e pára a pílula que começa a ter muitas dores”.
[LER_MAIS]O médico adianta que não há uma idade para o aparecimento da endometriose, mas ela está “associada à idade reprodutiva”. Ana Parreira descobriu que tinha endometriose precisamente quando estava a tentar engravidar. Foi obrigada a fazer tratamentos de fertilidade e as dores intensificaram-se e prolongaram-se por todo o mês.
Descobriu qual era o seu problema quando uma paciente que encontrou na clínica a alertou para a endometriose e a aconselhou a procurar um especialista. O diagnóstico foi feito imediatamente na primeira consulta, ainda sem necessidade de exames complementares. “Fiz depois ressonância magnética que confirmou que tinha uma endometriose profunda, já com comprometimento de vários órgãos.”
Como nutricionista decidiu investigar e encontrar uma solução alimentar para amenizar os sintomas. “As portadoras de endometriose têm inchaço abdominal, gases, cólicas e diarreia ou obstipação. Investiguei para perceber o que poderia fazer para melhorar e mudei a minha alimentação. Agora trabalho com mulheres com endometriose, ajudando-as a melhorar os sintomas através da alimentação.” Cada caso é um caso e Ana Parreira, que gere a página de Facebook Uma Nutri com Endo, adapta o plano alimentar às queixas.
“Fazemos uma alimentação anti-inflamatória, trabalhando os alimentos por várias etapas. Faz-se um reset ao organismo e começamos a testar. De uma forma geral, as portadoras de endometriose devem evitar o glúten, a lactose, as carnes vermelhas e os alimentos processados e industrializados”, refere a especialista, mas “às vezes basta uma diminuição da quantidade de glúten”, exemplifica, destacando a importância do exercício físico.
Ana Parreira tem hoje dois filhos, um dos quais concebido de forma natural. “Engravidei no ano passado e nem o médico queria acreditar que fosse possível.”
Vera Ferreira tem 24 anos e desde os 11 que a menstruação sempre foi um “sofrimento”. “A minha vida entrava em pausa nessa altura. Deixava de viver. Fui bailarina e praticava desporto e não conseguia fazer nada. Ficava deitada na cama com dores. Nem conseguia ir à escola.” Foi crescendo, procurou ginecologistas, realizou exames e ouvia sempre o mesmo: “está tudo bem”.
“Normalizavam a situação. Diziam que era normal nas adolescentes.” Só aos 21 anos teve finalmente o diagnóstico. Sem uma endometriose demasiado grave, a cirurgia foi descartada, para já. A solução foi o uso de anti-concepcionais contínuos.
“Em 2020 já não me sentia mulher por não menstruar e decidi não tomar mais o contrapcetivo. Ao mesmo tempo fiz um trabalho de desenvolvimento pessoal. Ou porque tomei todo aquele tempo o anti-concepcional ou pelo trabalho pessoal, agora as dores resumem-se a um ou dois dias”, conta.
A jovem admite o receio de não poder engravidar e isso foi o que mais a incomodou quando soube o diagnóstico. “Chorei imenso com medo de não poder ser mãe.”
Os pais nunca duvidaram das suas dores e, por isso, houve uma procura incessante por respostas. “Não compreendo como é possível um ginecologista não colocar a endometriose como uma hipótese quando está perante estes sintomas. Quando fui à consulta a uma especialista nesta área o diagnóstico foi feito de imediato.”
João Sequeira Alves admite que ainda há um “algum desconhecimento da classe médica”, mas alerta que “há uma tendência quase social para desvalorização das queixas”.
“As próprias doentes desvalorizam um pouco a dor.” No entanto, “as coisas estão a caminhar no sentido positivo e a maior parte das pessoas já sabe que a doença existe, apesar de ainda não haver muitos centros que façam tratamento de endometriose profunda”.
A falta de resposta faz com que o tempo de espera para uma cirurgia, sobretudo no Serviço Nacional de Saúde, seja grande. Os custos acabam por ser elevados. Uma das poucas respostas públicas é o Centro Materno Infantil do Porto.
“Mesmo a cirurgia por laparoscopia é muito delicada, dispendiosa e nem todos os centros têm capacidade para oferecer esse tipo de intervenção. É preciso ter conhecimento e uma rede de especialistas, porque não funciona apenas com o ginecologista. É preciso um cirurgião geral e outros especialistas da área onde pode estar o foco”, revela o médico.
Além das dores na menstruação e durante as relações sexuais, a endometriose deixa marcas emocionais nas mulheres. “A tristeza, o desânimo, o desamparo, a perspectiva negativa sobre o futuro, a ansiedade, o medo ou a irritabilidade são todos factores psicológicos que fazem com que a pessoa peça ajuda”, adianta Sílvia Brites.
A psicóloga acrescenta que a “condição feminina vulnerabiliza e amplia muito a forma como a pessoa se vê”. “Num quadro de endometriose há sentimentos de inferioridade e de mutilação na condição física e falta de autoestima. Pensa-se: não sou uma mulher como as outras, não sou capaz enquanto mulher.”
Ao nível psicológico o tratamento pode passar por motivar a mulher a procurar as melhores opções nos seus cuidados e “validar as suas decisões pessoais”, sem julgamento.
Passar por todo o processo de endometriose é “uma prova de fogo” para os casais. “Se superarem essas situações conseguem superar qualquer coisa, porque toda a vida íntima passa a ser exposta. A endometriose é a maior causa de infertilidade e as mulheres têm muito medo.”
A psicóloga é também portadora de endometriose, pelo que compreende tudo o que passam as suas pacientes. “Quando estamos envolvidos nesta história e ouvimos dizer que não se vai conseguir ter filhos, não importa sacrificar o corpo. Mas depois é uma doença que é muito difícil ser vista como tal. Se tiver um diagnóstico de cancro tenho um tratamento disponível. O tratamento para a infertilidade não é visto dessa forma. Há um infinito de emoções e de pensamentos que surgem. Acaba por haver uma questão psicológica que é a desesperança aprendida, que é difícil de ultrapassar e depois torna-se num modus operandi da pessoa”, alerta Sílvia Brites.
Os números
2217
Também esta especialista passou anos com dores até ser diagnosticada. Aos 26 anos a doença começou a manifestar-se. “Acontecer em 2005 é muito diferente de acontecer em 2019, 2020 ou 2021. Não se sabia absolutamente nada sobre isso. O diagnóstico de cancro foi o primeiro que tive, o que para mim não fazia qualquer sentido. Tenho uma consciência corporal gigante e sabia que alguma coisa estava muito errada, mas havia pouca gente disposta a ouvir.”
A sua história cruza-se com a das outras pacientes. As dores fortes chegaram a ter o chão como o seu maior aliado. Dificuldades em defecar e urinar eram ciclícas. Quando encontrou o especialista certo, tudo ficou claro. O tratamento de fertilidade resultou numa gravidez de gémeos, que viria a perder. Hoje, é mãe adoptiva há oito anos de um menino de 11.
“Sinto que é esta a maternidade para a minha vida.” Filomena Silva começa a história da endometriose ao contrário. As manifestações de dores mais fortes surgiram depois de engravidar, um processo que também não foi fácil. “Já andava em tratamentos de fertilidade quando engravidei, embora os médicos dissessem que estava tudo bem comigo e com o meu marido.” Foi quando deixou de tomar a pílula que o pesadelo começou, embora, anos antes, quando iniciou a actividade profissional – associada ao stress e ansiedade – tenha passado por algo idêntico, que foi resolvido com a toma ininterrupta da pílula.
“Dor é pouco para definir o que se sente. Nem para ter o meu filho sofri tanto. A generalidade dos ginecologistas não tem conhecimento. É absurdo ir tantas vezes ao hospital e ninguém saber nada. Numa observação rápida fui diagnosticada com a doença e até com um nódulo.” Foi depois de recorrer ao centro do Porto que ficou com o diagnóstico.
A cirurgia foi recomendada. O tempo de espera de cerca de dois anos levou Filomena Silva a accionar o seguro de saúde e ser operada no privado. “A saúde não é de facto acessível a todos. É lamentável não haver resposta no SNS e que persista o pensamento tacanho que ter dores na menstruação é normal e uma condição de ser mulher. Ao menos coloquem a endometriose como uma hipótese.”
João Sequeira Alves explica que não há uma causa única para o aparecimento da doença. “Uma das teorias mais conhecidas é a menstruação retrograda, como se saísse pelas trompas. Depois o endométrio, esse tecido menstrual, pode acumularse em zonas que não são habituais e causa a doença conhecida por endometriose. Há a teoria das células pluripotenciais que estão na medula e que se podem alojar noutros sítios e dar origem a tecidos estranhos fora do sítio e a teoria de disseminação, quase como se o endométrio se comportasse como um tecido tumoral.”
O especialista alerta que “todas as dores que possam existir, mesmo que não sejam muito especificas da menstruação, mas que coincidam com o calendário menstrual, são sempre de desconfiar”.
Além das queixas urinárias ou intestinais, pode haver dores num ombro ou queixas pneumológicas. “A endometriose também afecta muito frequentemente a fertilidade, o que carece de um acompanhamento multidisciplinar.”