“Iam parar todos ao lixo”, comenta Adélio Amaro. Quando lhe chegaram às mãos 212 cartazes do primeiro ano de actividades no Teatro José Lúcio da Silva, quase imediatamente surgiu a ideia de escrever acerca da sala de espectáculos inaugurada em 1966, que é, ainda hoje, a maior em Leiria. A pesquisa realizada ao longo de seis anos trouxe à tona “episódios fantásticos” com “vários pormenores curiosos” e tem como âncora documentos descobertos no museu m|i|mo e no arquivo municipal. Alguns, em “caixas que estavam por ser digitalizadas, trabalhadas” e “identificadas”. Ou seja, de que “era necessário fazer o puzzle”.
Actualmente, já “está tudo disponível online”. Só por isso, diz o autor, “valeu a pena”. A investigação resumida em mais de 400 páginas explora a linha cronológica entre o momento em que se começa a falar na demolição do Teatro Maria Pia na zona da Fonte Luminosa (que viria a confirmar-se em 1958) e o primeiro aniversário do novo equipamento. Um período “complexo” que abre uma “discussão muito grande”. Além de outras polémicas, “havia pessoas que diziam que construir o José Lúcio da Silva onde está actualmente [à época, um terreno de vinha] era muito longe do centro da cidade”.
Com 38 livros publicados sobre história local e etnografia, o presidente da direcção do Centro de Património da Estremadura (Cepae) acredita que “as pequenas histórias da história de cada região é que fazem a história de um país”. Sobretudo, quando permitem preservar documentação que se abriga avulsa, em diferentes locais. “E nós, em Leiria, temos uma história muito rica, não só na cidade mas em todo o concelho e até na região”.
Em Teatro José Lúcio da Silva, Contributos para a sua História (1951-1967) conta-se que o empresário benemérito que dá o nome à sala de espectáculos inicialmente ofereceu 5 mil contos ao município, mas “acabou por gastar o dobro” até ao final da obra, em troca de um “camarote vitalício” para a família. Logo no primeiro ano, o público viu grandes êxitos do cinema como Música no Coração e peças de teatro com os mais famosos actores portugueses, mas também ali aconteceu a reunião que criou a União Desportiva de Leiria. Da informação recolhida, “praticamente nada estava na internet”, salienta Adélio Amaro, que consultou textos da imprensa regional, correspondência, maquetas e outros documentos originais.
Melhor que palavras cruzadas
Da autoria de Ricardo Charters-d’Azevedo, já são 30 livros inspirados na história local e no interesse por árvores genealógicas, todos escritos durante a reforma, nos últimos 20 anos. “A minha mãe deitava fora os papéis velhos e eu ia por trás e guardava-os num caixote”, diz o antigo proprietário da Villa Portela, em Leiria. “A gente tem antepassados pobrezinhos e tem antepassados importantes. Há de tudo lá para trás. E, portanto, fui descobrindo aqueles que tinham sido importantes e era possível fazer qualquer coisa sobre eles. Por exemplo, o barão de Porto de Mós, que foi morto a tiro na Nazaré”.
Outros nomes de parentesco sinalizados no retrovisor incluem o sétimo cardeal patriarca de Lisboa, D. Patrício I, natural dos Pinheiros. “Como era maçon, patife pedreiro, chamavam-lhe assim”. E, claro, o inglês Charters, que casou em Leiria com a filha de um médico. “O senhor vem em 1808 para Portugal com o Wellington para combater o Napoleão. Depois mandou chamar uns sobrinhos que foram fixar-se na zona de Regueira de Pontes, Amor”. Mas não só: também Johann Giffenig, indicado para o levantamento da estrada entre Rio Maior e Leiria no século XVIII. “Oficiais alemães que vieram para cá. Um chamado Niemeyer, “avôzinho” daquele Oscar Niemeyer, arquitecto de Brasília”.
A destruição provocada em Leiria pelas invasões francesas, a Villa Portela e a identidade do Couseiro constam na lista de assuntos investigados por Ricardo Charters-d’Azevedo, um frequentador assíduo da Torre do Tombo. “O meu médico diz-me: reformas-te e agora tens de fazer palavras cruzadas para teres os miolos a funcionar. E se eu escrever uns livros? Muito melhor”. A explicação é mesmo a mais simples e a origem perde-se entre as brumas da memória: “O género humano gosta de saber histórias”.
Responsável pela criação do Prémio Villa Portela de história local, agora atribuído em exclusivo pelo Município de Leiria, Ricardo Charters-d’Azevedo encara cada projecto como a passagem do testemunho numa corrida de estafetas. “Sempre que faço qualquer coisa, publico. Vai para a Biblioteca Nacional, fica registado. E quem quiser que continue”.
Por amor a Leiria
Joaquim Santos acredita que ainda “há muito por descobrir”, em especial, na escala da proximidade. “Muitas histórias de Leiria, muitas particularidades de Leiria por conhecer”. Inclusive, junto das entidades oficiais. “Documentação que nem sabemos, que não está consultável ou [se encontra] em pastas que não estão classificadas”, explica. “Há muita matéria, muitos documentos por desvendar, não há é investigadores”.
Com 33 livros publicados, o director do Notícias de Colmeias lembra que nos arquivos municipais e distritais “existe um manancial de documentação” que pode ajudar “a desvendar e a conhecer melhor o desenrolar dos acontecimentos” e “os protagonistas”. E a digitalização dos vários fundos, com acesso online, constitui “uma real vantagem” para acelerar a pesquisa.
São horas e horas entre pó e papéis, anos a fio, mas sempre “de forma desinteressada”, assegura. “Ninguém me paga para isto. É mesmo por amar a cidade, por gostar de Leiria, que faço este trabalho”.
Orgulho e preconceito
Saul António Gomes, autor e co-autor de vários estudos e monografias, de Leiria a Alcobaça, Porto de Mós ou Ourém, além de colaborações regulares nos Anais Leirienses da editora Hora de Ler, destaca, como “grandes descobertas”, no âmbito local e regional, as pinturas medievais da igreja de S. Francisco de Leiria, atribuíveis ao tempo de D. João I, e as pinturas quatrocentistas da abóbada da sacristia do mosteiro da Batalha, que considera, ambas, “surpreendentes” e “totalmente ignoradas até há alguns anos”.
O professor e investigador da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra sublinha que “há imensos espaços e temas para investigar” e que “seria bom ter um conjunto amplo de boas monografias, feitas com critérios científicos, para se compreender mais profundamente o que é a região que habitamos e que somos”. E acrescenta: “Testemunhos vivos da história, sobretudo no domínio da oralidade, devem ser recolhidos e salvaguardados pelas instituições que garantem a preservação dessa informação. Seria importante que arquivos e outros centros de documentação, da região de Leiria, investissem mais na acessibilidade permanente às fontes históricas que custodiam. Isso ajudaria a região a alcançar escalas de representatividade cultural internacional mais significativas; seria uma forma de valorização da região pela disponibilização sem reservas dos seus arquivos”.
“Os avanços tecnológicos vieram abrir ainda mais os arquivos aos investigadores”, eliminando condicionalismos, mas outros persistem, segundo Saul António Gomes. “Há efectivamente preconceitos muito enraizados, por parte de certas elites pensantes universitárias, acerca do local, sobretudo quando o local é na província, desvalorizando os ganhos científicos e académicos alcançados nesses territórios ou apoucando o esforço editorial”, critica. Importa “resistir, obviamente, a essa despromoção da história local”.
No fim do dia, o que fica, aponta Saul António Gomes, é que “a História é uma referência relevante na vida e na identidade das comunidades tanto locais como nacionais”. E que “a história da cidade de Leiria e dos seus monumentos, ou a de outros centros urbanos”, é “exactamente tão local como uma história de Lisboa ou de outra grande cidade dentro e fora de Portugal, e tão nacional ou global quanto a de qualquer outra localidade”. Mais ainda, “a região de Leiria é particularmente rica em património histórico de nível mundial”, que justifica “circuitos turístico-económicos que contribuem para a sua riqueza económica”. Logo, “conhecer o passado destas terras é fundamental para as podermos valorizar no mundo aberto”.
Ao todo, Adélio Amaro, Ricardo Charters-d’Azevedo, Joaquim Santos e Saul António Gomes publicaram mais de uma centena de livros sobre a história local. E novos projectos estão já em pleno voo. Afinal, a marcha do tempo não pára.