Quais os principais problemas da Comarca de Leiria?
Sem dúvida a questão dos recursos humanos. Temos um défice de 42 oficiais de justiça num quadro de cerca de 300 funcionários. Quando cheguei tive também de resolver a falta de juízes, devido a ausências por doença, gravidez ou licença de paternidade. Obviamente são situações legítimas, mas causam um problema de gestão porque a chamada bolsa de juízes também é deficitária. Não tínhamos juiz na Nazaré nem em Peniche, faltava um na Marinha Grande, e Alcobaça não tinha dois juízes no local cível e local crime. A resposta foi dada com a “prata da casa”, com a boa vontade dos meus colegas que se dispuseram, além de assegurarem o seu serviço, a assegurar o serviço em falta. E é assim que têm sido resolvidas estas situações. À parte disso temos problemas estruturais.
Os problemas de acessibilidade são conhecidos. Que outros existem?
Praticamente todos os edifícios têm esse problema, à excepção dos novos. No Palácio da Justiça as plataformas [para deficientes] estão permanentemente a avariar e a reparação é sempre onerosa e muito morosa. Avariam em regras duas vezes ao ano e são cerca de quatro meses para reparar, entre trazer a empresa, que cobra 400 euros só para visitar, o tempo de adjudicar e a reparação. Como são três plataformas, a pessoa consegue aceder da primeira para a segunda, mas, se a de cima estiver avariada, já não consegue passar ao outro piso. O edifício deveria ter um elevador. Aliás, a Comarca tem proposto, nos vários relatórios, a construção de uma plataforma elevatória vertical. Penso que a DGAJ [Direcção- Geral da Administração da Justiça] concorda, mas o IGFEJ [Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça] é que constrói e depois não avança. Isto tem de ser colocado nas prioridades.
Não ficaria mais barato para a tutela colocar novo, em vez de reparar constantemente?
É óbvio que fica. Cada reparação da plataforma custa milhares de euros e as avarias são consecutivas. Estamos a falar de mecanismos já muito antigos. A comarca não pode resolver estas questões, porque tem de ser sempre autorizada pela DGAJ. Depois temos essa questão: a DGAJ é a responsável pela reparação e manutenção, mas a responsável pela eventual construção do elevador é o IGFEJ. Além do problema da falta de recursos humanos e das estruturas deficitárias, outro dos problemas que temos é o relacionamento com o Ministério da Justiça. Sem atribuir qualquer censura, continuamos muito limitados na nossa autonomia. A autonomia decisória da comarca é quase nula, precisamos sempre de autorização e isso limita- nos.
Seria mais eficiente desburocratizar?
Há muita burocracia e muita da capacidade de decisão está em Lisboa. Temos uma boa relação com o IGFEJ e com a DGAJ, mas os canais de ligação, muitas vezes, não são tão expeditos como queríamos. Sentimos que poderíamos localmente fazer uma melhor gestão, mais barata, mais eficiente e mais rápida se nos dessem essa autonomia, obviamente limitada e sujeita a fiscalização. Mas não há órgãos mais sindicados do que nós e no entanto não temos autonomia. Estamos sujeitos à sindicância do Tribunal de Contas, da Assembleia da República, do Conselho Superior de Magistratura, do Ministério da Justiça e do público. Os órgãos de gestão da comarca – bem criados – servem basicamente para sinalizar as dificuldades e para pressionar no sentido da sua resolução. O sistema de videovigilância do Palácio de Justiça de Leiria não funciona e a reparação não é viável por estar obsoleto. Não é um risco? Está previsto que o IGFEJ vá fazer um novo, pelo que não vai reparar o actual. Continuamos à espera. Mas o Palácio da Justiça é onde está centralizada toda a parte criminal, com os processos de notoriedade e não há videovigilância. Se dependesse de nós já teríamos agido.
Quantos processos pendentes tem o Tribunal de Leiria? O número diminuiu ou subiu?
A Comarca de Leiria tem estado com taxas de resolução muito boas. Este ano entraram 29.452 processos e terminaram 34233, quase mais 5000 processos do que entraram. Antes estavam pendentes 36.526 e ficaram pendentes, no dia 31 de Dezembro, 31.423. Estamos quase a baixar a fasquia dos 30 mil o que é bastante bom, sobretudo, para um distrito que é muito populoso, tem muita indústria, alguma criminalidade e, embora mantenha uma vertente rural assinalável, é bastante urbano. Com a urbe vem a necessidade de justiça. A taxa de resolução (rácio entre processos entrados e findos) foi de 116%, o que significa que por cada 100 processos entrados acabaram-se 116. Houve uma efectiva diminuição de pendência, na linha do que vinha de trás, não obstante as dificuldades que temos da falta de magistrados, sobretudo de juízes. O bom resultado deve-se ao excelente trabalho de todos, mas tenho de destacar o excelente trabalho que os oficiais de justiça têm feito, que mesmo em défice, tem permitido praticamente não termos processos atrasados, mesmo não recorrendo a ajuda externa. O profissionalismo e abnegação dos juízes, que trabalham mais do que lhes poderia ser exigido, tem sido, em conjugação com os oficiais de justiça, a grande mola destes bons resultados estatísticos, o que também se traduz na qualidade da justiça. Basta ver na parte cível, onde há mais volume processual. Entraram 19.442, findaram 24.035, uma taxa de resolução de 120,4%. Ou seja, por cada cinco processos que entraram, seis findaram, o que é excelente. Este Governo reabriu juízos.
O que é melhor para os cidadãos, tribunal de especialidade ou de proximidade?
A especialização é sem dúvida um benefício até certo ponto importante. Foi bem feita no sentido de centralizar as valências mais importantes. Em 2014, teve uma vertente de afastamento das pessoas desses julgamentos. Basta pensar que actualmente um crime grave que seja cometido no Bombarral ou em Castanheira de Pera é julgado em Leiria. Em 2017, criaram-se alguns juízos de proximidade, o que implicou a deslocação dos juízes. É bom que os juízes possam fazer os julgamentos no local, mas temos de ter a consciência que isso também implica uma menor eficiência do seu trabalho. Se os juízes se tornarem itinerantes, o seu desempenho vai ser afectado pelo tempo que perdem em deslocações. A reforma de 2017 tentou aproximar a justiça e é de elogiar essa iniciativa governamental. Idealmente – não falo em ter um tribunal em cada concelho – os julgamentos, sobretudo, os mais importantes, deveriam ser feitos o mais próximo possível, mas a decisão deve caber ao juiz. Tenho algumas dúvidas do princípio juiz itinerante, aplicado de forma obrigatória e generalizada, pois prejudicará o desempenho de juízes e a qualidade do serviço prestado aos cidadãos. Defendo que não se torne essa deslocação obrigatória e que seja o juiz a decidir caso a caso.
Há falta de juízes em Portugal?
Para mim, não há falta de juízes. Os juízes desempenham é tarefas que não deviam ter de realizar. Se um juiz não tiver que passar três ou quatro horas a fazer tarefas burocráticas que podem ser desempenhadas por um oficial de justiça qualificado, naturalmente reservará mais tempo para os julgamentos. [LER_MAIS] As pessoas pensam que o juiz chega ao tribunal, vai para a sala de audiências, julga e dita a sentença. Essa é uma pequeníssima parte do trabalho do juiz. Todos os actos obrigam à intervenção do juiz quando na prática não é forçoso que seja necessária. As sentenças não são apenas pensadas e escritas. É preciso justificá-las. Nas nossas leis processuais, infelizmente, existe um dever de fundamentação tão exigente, que implica que uma sentença que poderia ser de uma página, como é no estrangeiro, seja de várias páginas e não é pelo gozo pessoal do juiz. Temos de cumprir a lei e também garantir que a decisão está bem fundamentada para evitar que os tribunais superiores venham considerar a decisão nula. Por que é que actualmente temos um dever de fundamentação de facto tão grande quando os elementos de prova são todos gravados? Se alguém não concordar com a nossa apreciação dos documentos ou das perícias, eles estão no processo; se não concordar com a fidedignidade da prova testemunhal, está tudo gravado. Não entendo por que é que o juiz tem que fundamentar tão extensivamente os factos provados e não provados. Deveria ser dado cumprimento àquilo que está já decidido legalmente há muito tempo: o juiz deve ter assessores e exercer a função jurisdicional, que é fazer julgamentos e sentenças.
Concorda com a greve dos juízes, já que são um órgão de soberania?
É a mesma coisa que perguntar se o estivador pode ou não fazer greve. Aqueles que dizem que os juízes não podem fazer greve por serem órgãos de soberania são os mesmos que não fornecem à judicatura os meios para ser um órgão de soberania. Se os tribunais são órgãos de soberania devem estar dependentes orçamentalmente do poder executivo? O Conselho Superior da Magistratura não deve ter um orçamento próprio para gerir a judicatura? Deve estar dependente do Orçamento do Estado definido pelo Governo? A separação de poderes existe quando o poder judicial está dependente do poder executivo? São perguntas que deixo aos cidadãos. Os juízes, sendo titulares de um órgão de soberania, são pessoas normais e naturalmente têm despesas para pagar. Só podemos viver exclusivamente do nosso salário, portanto, temos tanto direito como qualquer outro cidadão de reclamar.
Os juízes deveriam ser melhor pagos para evitar a corrupção?
Não somos imunes ao flagelo da corrupção, mas os fenómenos de corrupção na judicatura são raríssimos. A necessidade da independência económica é imposição de todos as convenções internacionais e isso tem uma razão de ser. Um juiz que esteja financeiramente dependente de alguém é menos independente, mais parcial, mesmo no seu subconsciente. Se o juiz fosse pago por uma cadeia de supermercados, qual seria o tratamento que iria merecer essa empresa quando tivesse acções em tribunal? Neste momento o juiz é pago pelo orçamento do Ministério da Justiça e o Estado também é parte de acções em tribunal.
Tem-se falado que se prende muito em Portugal. A baixa criminalidade não estará ligada às penas de prisão que servem de dissuasão?
Se fizermos uma resenha das notícias sobre as penas de prisão vamos encontrar situações em que se diz que este e aquele foram libertados quando deveriam estar presos, e noutras situações que afinal se prende muito e por isso é que as cadeias estão lotadas. Os juízes prendem quando têm de prender e aplicam a lei como ela está feita. A prisão preventiva é a última medida de coacção que é aplicada. O juiz cumpre a lei e não está à espera do politicamente correcto nem a pensar se os estabelecimentos prisionais estão lotados ou não. Se se concluir que há presos a mais isso deve-se a dois factores: à lei e à sociedade que temos.
As penas por crimes de violação e abuso sexual são aquelas de que se ouve mais críticas.
Essas decisões têm tudo a ver com a nossa lei. As pessoas têm de perceber que só a falta de consentimento para a manutenção de relações sexuais com outra pessoa não é violação. Para ser violação é preciso que haja também violência. Há casos que na linguagem comum são tratados como violação, mas na linguagem jurídica não o são. Configuram o crime de abuso sexual. Temos de ter consciência que as penas não existem para fazer pagar o delito, mas para recuperar a pessoa. O objectivo não é: ‘erraste e tens aquilo que mereces’. Num Estado de Direito as penas são aplicadas para a pessoa voltar a ser um cidadão socialmente adequado. O Estado não existe para punir as pessoas, mas para impedir que prejudiquem outras. As penas servem também como prevenção geral, para dizer às pessoas que existem regras que têm que ser cumpridas. Muitas vezes as pessoas comentam sem saber do que estão a falar. Só podemos fazer julgamentos sabendo o que se passou.
As pessoas confiam na justiça?
Os tribunais existem para impedir que os cidadãos façam justiça privada, se não viveríamos na barbárie e quando houvesse um conflito andaríamos aos tiros uns aos outros. As pessoas continuam a confiar na justiça, porque o número de processos entrados continua a não diminuir. A nossa justiça é uma justiça de qualidade. Nunca foi essa a crítica que foi lançada à justiça portuguesa, mas sim a morosidade e a existência de muitos processos. Neste momento, essa crítica está cada vez menos justificada, porque os tribunais portugueses demonstram que até são dos mais rápidos da Europa, quer a nível cível quer criminal. A critica é um direito dos cidadãos, o problema é que cada vez mais as pessoas se pronunciam sobre aquilo que não conhecem e não falo só do cidadão comum, mas de pessoas que têm visibilidade pública. Alguém que faz um comentário e uma apreciação sem ter o conhecimento de todos os factos e da situação não está a ser honesto.
Em 2017, foi o juiz presidente do colectivo que ilibou um suspeito de violência doméstica, tendo sido alvo de muitas críticas.
A essa pergunta não posso responder por força do meu estatuto profissional.
Apaixonado pela profissão
Carlos Oliveira nasceu em Luanda, Angola, mas foi na cidade de Coimbra que cresceu e realizou o seu percurso académico. Ingressou na magistratura judicial em 1995, tendo exercido as funções de juiz de Direito em Coimbra, Penela, Pampilhosa da Serra, Estarreja, Tondela, Lamego, Guarda, Covilhã e Viseu.
Por deliberação do Conselho Superior da Magistratura foi nomeado juiz presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, tomando posse no dia 12 de Abril de 2018. Apesar de privilegiar o convívio com a família e amigos, sempre que pode, Carlos Oliveira assume-se como um apaixonado pela profissão.
"Sou juiz por vocação. É oneroso porque me afasta das coisas que mais gosto de fazer, sobretudo estar com a família, mas não deixa de ser um prazer. Sou um privilegiado por isso.”
As partidas de futebol, a leitura e o cinema fazem parte do seu (pouco) tempo livre. “É um escape. Desligar da profissão é quase impossível, porque temos consciência que lidamos com a vida das pessoas e isso é uma grande responsabilidade.”
Licenciado em Direito, com o mestrado em Direito Civil representou o Conselho Superior da Magistratura em reuniões no Ministério da Administração Interna, no âmbito de trabalhos de planeamento e coordenação da segurança rodoviária e da revisão da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária em 2012.