Há uma nova vida no Mosteiro da Batalha? Com as encenações históricas e uma nova abordagem pedagógica, parece que as pedras antigas têm agora mais vida e até falam e contam a sua história aos visitantes.
O meu plano de acção estratégica vinculou três ou quatro áreas essenciais de intervenção, das quais não me tenho desviado. No fundo, representam aquilo que penso que deve ser a gestão do monumento. O mosteiro não deve ser um espaço museológico fúnebre e deve ser habitado por "pedras vivas". Nesse sentido, temos de o preencher com projectos de âmbito cultural e com uma aposta muito forte no serviço educativo, para aliciar as novas gerações a conhecer o seu património e a conhecer a sua história, de modo a conhecer a sua própria cultura. Quando assumi o cargo há cinco ano, falei com o grupo de teatro O Nariz e propus um modelo de encenações que fosse ao encontro dessas necessidades pedagógicas pelas quais sentia que o monumento apelava.
Com O Nariz, o público conhece a história dos arquitectos, dos monges que viviam no mosteiro, as suas rotinas e alimentação e o facto de o mosteiro ser sido uma importante universidade.
Na última encenação, que está em avaliação, fala-se dos reis e da rainha Filipa de Lencastre. Também o nosso próprio serviço educativo tem apostado nessas encenações com os nossos funcionários. A nossa técnica superior Rita Miguel veste-se de Dona Filipa ou de monge para explicar aos mais novos e para semear nas suas mentes pequenas recordações que lhes ficam e fazem sentir que o mosteiro também é seu. Há casos de crianças que estiveram cá, assistiram a estas encenações e chamam os pais para visitarem o monumento. Trabalhamos para o futuro. Como sou professor, tenho alguma sensibilidade pela questão. É que há indícios que me preocupam muito. Cerca de 80% dos nossos 500 mil visitantes são estrangeiros. Isso indica que os portugueses não apreciam o seu património… ou pelo menos, não o vêm conhecer. Há cinco anos, também estávamos a perder visitas de estudo e em dois anos, aumentámos 37% essas visitas, graças a várias dinâmicas, entre elas as recriações.
Outros monumentos e o Ministério da Cultura poderiam seguir o exemplo e contratar grupos de teatro, com representações historicamente e pedagogicamente validadas?
Sei que outros monumentos têm essa preocupação, embora, nem sempre, seja central na sua estratégia de acção. No meu caso, está nas quatro prioridades. As encenações são autosustentáveis. As escolas têm entrada gratuita e, se escolherem a opção do teatro, pagam um preço por aluno e isso é algo que não implica custos para o monumento. Há uma parceria entre o mosteiro, o Museu da Comunidade Concelhia da Batalha e a Autarquia, que permite "aconchegar administrativamente" este projecto, pois as receitas que, por lei, não podem entrar no monumento, vão para a autarquia e museu que, depois, pagam à companhia de teatro. A Unesco tem um paradigma de gestão que tento incorporar neste modelo misto: o monumento tem de conviver, relacionar-se e ouvir a comunidade. Um dos princípios basilares, enquanto director do Mosteiro da Batalha, foi o estreitamento de relações com a Câmara, com as forças vivas e associações locais, para potenciar dinâmicas que, sem o seu apoio, seriam impossíveis de adoptar.
E a comunidade local? Quão bem conhecem os batalhenses o seu mosteiro?
Se calhar menos do que julgam, mas defendem-no intransigentemente, porque é deles! Esse é um princípio basilar das comunidades. Por vezes, essa defesa pode ser um pouco extemporânea, mas é um princípio que qualquer director de monumento deve incorporar e até apreciar. Isso acontece até nas coisas polémicas.
Como aquela polémica contra o apelidado “Muro de Berlim” em frente ao mosteiro? Qual é, em termos práticos, a avaliação daquele dispositivo de protecção do monumento, até agora?
É uma obra consensual. Quando o muro começou a crescer, realmente, houve a ideia de que ele iria estragar toda a perspectiva do mosteiro. Porém, a ideia mudou, a partir do momento em que foi construído e a população percebeu que, afinal, não tapava a vista. Que aquela estrutura florida era pacífica e que há uma redução efectiva do ruído. Mesmo ao "ouvido desarmado", percebe-se que houve diminuição do ruído. É possível ter uma conversa, sem ser aos berros, em frente ao mosteiro.
A medida aconselhável seria retirar o trânsito no IC2, fonte de problemas que está a danificar o mosteiro com ruído e poluição, e fazê-lo passar pela A19, a via que foi criada, especificamente, para esse fim?
Aí, é que a população se deveria erguer com bastante força e insurgirse contra a manutenção das portagens na A19, que empurram o tráfego todo para a frente do seu mosteiro. Se sentem o monumento como seu e querem a sua salvaguarda e protecção, a população da Batalha tem de ser uma voz na luta para o fim das portagens na A19! Aquela energia toda que se registou quando o muro de protecção começou a ser construído tem de passar para a luta pelo fim das portagens. Se a população se erguer com força, acabará por conseguir esse intento. Todos ganhariam. O monumento não é um monólito isolado, mas contém toda a paisagem envolvente.
Que razões levaram a Batalha a ter o terceiro monumento nacional mais visitado?
É uma obra-prima do gótico muito bem preservada, aliado ao facto de estar perto de Fátima, Alcobaça e Tomar e integrar um circuito entre Fátima-Óbidos-Coimbra e Lisboa. Há um aumento do número de visitantes e tem havido uma estratégia de divulgação do monumento, muito cúmplice, entre o mosteiro, o Turismo do Centro, a Agência de Qualificação, a Agência de Promoção Turística e a autarquia. Há bloggers, há jornalistas, há cadeias de televisão constantemente aqui. Também temos tido um programa cultural muito consistente que tem trazido grande visibilidade. Por exemplo, a nossa exposição do Mircea Romain está em todo o lado na Roménia! E, não posso esquecer a acção do nosso Serviço Educativo. Temos mais de 40 mil visitas de jovens das escolas por ano.
Mesmo assim, os turistas não passam muito tempo na vila, a experimentar a gastronomia, não dormem lá, nem se inteiram do que por ali se passa. Porquê?
É um dos problemas do nosso turismo. Sinto, porém, desde há dois anos, que, apesar de tudo, nos meses de visita de família, que é o caso do mês de Agosto, há uma permanência maior.
Poderá ser um problema do tecido comercial e envolvente do mosteiro? As lojas, restaurantes e as ruas de Alcobaça, aqui perto, estão sempre cheias de visitantes…
Alcobaça tem a doçaria conventual, que nós não temos, porque os nossos monges tinham uma vivência muito regrada… São coisas que, com o tempo e com a procura, vão mudando. Temos já alguma oferta hoteleira e de restauração de qualidade. Há quatro ou cinco anos, na época baixa, era muito fácil encontrar um quarto disponível. Agora já é mais difícil. Mas o comércio da [LER_MAIS] Batalha precisa de se requalificar. Não querendo desprestigiar ninguém, é muito semelhante ao da Nazaré, na medida que se encontra em qualquer lado, até em Lisboa, embora haja uma ou outra loja que tem a preocupação de procurar produtos locais.
O que pensa de cobrir as Capelas Imperfeitas, com uma estrutura que, sem desvirtuar o legado, permita realizar eventos de elevado cariz cultural?
Não é uma prioridade. Contudo, é algo que deve ser começado a pensar. Seria uma estrutura que protegesse aquele espaço temporariamente, por 200 ou 300 anos, de modo a que as gerações futuras ainda tenham a oportunidade de o usufruir e contemplar com alguma qualidade de conservação. Não sendo prioridade, é algo que deve ser, pelo menos, pensado. Quando se começa a discutir estes temas, as pessoas começam a ficar sensíveis ao assunto e vão interiorizado as possibilidades. Tenho perguntado a opinião de vários arquitectos de renome e, alguns, são completamente contra, outros, acreditam que se deve, no mínimo, começar a pensar nisso. Não é consensual, mas, claro, as coisas complicadas jamais o são. Olhando para a questão cultural, uma cobertura permitiria a realização de actividades ao longo de todo o ano.
Faz parte do Grupo de Missão da candidatura de Leiria a Capital Europeia da Cultura. Como foi que viu as críticas recentes de David Fonseca à candidatura, no JORNAL DE LEIRIA?
Quem olhar para as candidaturas de edições anteriores, conclui que "aquela cidade", que tinha tudo para ser "Capital Europeia da Cultura", com eventos, qualidade de projecto, equipamentos e patrocínios, não o foi e a escolha recaiu noutra menos óbvia. Porque o júri viu que na outra cidadezinha havia um conjunto de estratégias culturais que davam uma dimensão mais interessante do que a candidatura muito bem ancorada. Apesar de tudo, acredito que Leiria tem potencial para ser Capital Europeia da Cultura. Evidentemente, tem de ter uma estratégia definida e acredito que Paulo Lameiro, que estará à frente do grupo que vai preparar a candidatura, tem a capacidade de fazer pontes interconcelhias, entre instituições, entre associações e pontes internacionais, que são basilares. Estou no Grupo de Missão, mas fui um erro de casting, porque não tenho tempo para dar um contributo, mas tenho consciência de que Leiria tem de colocar já de pé uma estratégia bem definida daquilo que quer fazer, com os outros concelhos. Tem de começar a mostrar realizações culturais interconcelhias, que ilustrem o espírito de comunidade e de uma região unida e começar a usar as comunidades que estão no estrangeiro para realizar intercâmbios. O Mosteiro da Batalha tem ligações estreitas com Inglaterra, Leiria com a Suíça, através de Korrodi. São pequenas coisas que nos podem ajudar a criar pontes para a Europa. Vai ser fundamental na avaliação da candidatura aferir se ela tem bem ancorados o espírito e o diálogo europeus, numa fase quando há muito cepticismo e quando há o Brexit. Leiria deveria começar a estabelecer uma estratégia muito evidente internacional e na região. O Paulo [Lameiro], que estará à frente desse grupo, tem todas as condições para fazer um trabalho extraordinário. Acredito que temos hipóteses! Não são as candidaturas que fazem mais barulho que são eleitas e é bom que haja avisos como o do David Fonseca. É bom que haja cépticos para nos espicaçar e nos fazerem ver o que temos de melhorar.
Relojoeiro e restaurador de móveis por paixão
Joaquim Ruivo, 59 anos, natural do concelho de Leiria, vive desde sempre na localidade de Opeia, freguesia da Caranguejeira. Licenciado em História, pela Universidade de Coimbra, foi docente durante 33 anos e efectivou, primeiro, na Batalha, e, depois, na Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo, em Leiria.
"O meu lugar como director do Mosteiro da Batalha é de paixão e sempre com a noção de que tenho de fazer o melhor que posso", diz. Caso termine a comissão de serviço antes de se reformar, explica que regressará, com o maior prazer, à função de docente na secundária Rodrigues Lobo, onde estudou, quando jovem.
Foi presidente do Cepae – Centro do Património da Estremadura, onde colaborou na divulgação de estudos académicos sobre a região de Leiria e foi activista, vice-presidente e presidente da Assembleia da Amnistia Internacional em Portugal. Nos tempos livres, dedica-se à relojoaria e ao restauro de móveis.