Leia aqui a segunda parte da entrevista
O que leva hoje os jovens a serem bombeiros?
De Janeiro a Julho, a Escola Nacional de Bombeiros (ENB) fez provas de avaliação para novos bombeiros a mais de 1600 jovens. O voluntariado continua a ser algo de atractivo, mas poderemos discutir se os incentivos e regalias sociais são adequados. Na minha opinião, o modelo de bombeiro voluntário em Portugal deve ser repensado, porque a manutenção nos corpos de bombeiros é relativamente curta. Muitas vezes damos formação e depois não há retorno do investimento que é feito nessas pessoas. Por exemplo, rotatividade dos quadros de comando é extremamente grande, o que leva a que muitas vezes eles recebam formação e nem sequer ponham em prática. Toda a Europa tem bombeiros voluntários, mas há outros modelos com que, se calhar, Portugal pode aprender.
Que modelo é que defende?
Inclino-me muito para o modelo francês. A França tem quase 190 mil voluntários, que recebem verbas em função da disponibilidade para o serviço. Bombeiros 100% profissionais são todos militares. O bombeiro voluntário português quando está de serviço ao quartel durante a noite ou ao fim-de-semana não recebe rigorosamente nada. Em França, quem está de serviço recebe uma verba pela disponibilidade e as empresas que têm nos seus quadros bombeiros têm prémios de seguro mais baixos, porque é entendido que esses homens constituem uma brigada de primeira intervenção, o que vai diminuir o risco na empresa. O modelo português é bom, mas existem aspectos que têm de ser melhorados.
Os bombeiros devem ser profissionalizados?
Temos que aumentar o número de profissionais, não tenho dúvidas disso. O sistema que defendo é que das 7 às 22h o serviço tem de ser assegurado por profissionais. A partir dessa hora até às 7 da manhã há que estimular o voluntariado, porque isso faz com que os custos para o País sejam efectivamente menores. Também importa desmistificar: os bombeiros profissionais não sabem mais do que os voluntários. Aliás, de um modo geral, os bombeiros voluntários, em termos de fogos florestais, têm mais formação do que os profissionais. A formação da ENB não difere por serem voluntários ou profissionais, pois o risco não se interroga se é ou não assalariado. A formação tem de ser em função de dar resposta às tipologias de riscos existentes na área de intervenção daquele corpo de bombeiros.
Com tanta formação, como é que ainda se ouve falar na descoordenação no terreno?
Temos de treinar mais. Uma coisa é a formação, outra é a instrução. Formação é saber fazer, instrução é fazer. Em termos de trazer para o sistema mais conhecimento, Portugal não tem nada a aprender com ninguém. Teremos é que consolidar.
Fala-se numa indústria dos incêndios. Acredita numa acção concertada para que alguém ganhe dinheiro?
Não. Por exemplo, os bombeiros portugueses até há quatro anos não tinham equipamentos de protecção individual. O País fez um grande esforço. Basta passear pelos quartéis e vemos muitas viaturas com 20 e 30 anos que ainda estão ao serviço. Meios aéreos? Não quero crer. O problema está mal focado. Se formos às zonas dos incêndios do ano passado no distrito, vemos como está hoje a floresta. Está a crescer em força outra vez e se nada for feito não se admirem que daqui a dez anos volte a arder. Foi o que aconteceu em Monchique e Silves, que passados 15 anos voltaram a arder. Há um dado que temos de ter consciência: o vento é que tem vindo a agravar, isto associado ao estado da floresta.
E o fogo posto por interesses económicos? Uma reportagem da TVI denunciou que o incêndio no Pinhal de Leiria foi uma acção concertada dos madeireiros.
Não sei se foi concertada, mas causoume perplexidade como é que no espaço de duas ou três horas, separado por 15 a 20 quilómetros, apareceu um conjunto de incêndios. Uma coisa é haver um incêndio a norte da Nazaré e estar a haver um na Burinhosa. Podemos admitir uma projecção de dois a três quilómetros. Agora, estamos a falar de mais de uma dezena de quilómetros, ao aparecer um incêndio ao norte de Vieira de Leiria. O incêndio do Pinhal de Leiria foi um bocadinho esquisito e deveria ser bem investigado. Não tenho dados para afirmar que há incêndios por interesses económicos, mas não tenho dúvidas que há muita negligência.
Como levar pessoas a aceitar que o que faziam há 40 anos não pode ser hoje feito?
Não basta dizer que é proibido, porque sabemos que quem vive da terra tem necessidade de queimar. Se calhar, tem é de ter alguma sensibilização e pode-se ensinar como utilizar bem o fogo. A ENB produziu um guia, em colaboração com a Soporcel e com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, [LER_MAIS] e fez a experiência em cinco ou seis municípios, em que as juntas de freguesia sensibilizaram alguns idosos e ensinaram-lhes como queimar e os cuidados a ter quando se queima. Esta é uma área em que Portugal tem de dar um salto em frente. Os Serviços Municipais de Protecção Civil (SMPC) têm de ter um um papel mais activo em todo o processo. Só podemos dar um salto em frente quando os municípios se envolverem mais no processo. E os SMPC têm de ser gabinetes constituídos por pessoas com formação adequada, porque são esses elementos que podem constituir um grande foco de informação. Ninguém melhor do que quem trabalha numa câmara, que sabe que foi aberto um caminho aqui ou ali, para dar informação a quem tem de tomar decisões. Os SMPC e os Gabinetes Técnico Florestais têm de ser mais utilizados e melhor aproveitados.
Por que razão esse projecto de sensibilização junto dos idosos não foi replicado pelo País?
É uma iniciativa das juntas de freguesia e das câmaras municipais. Tem de haver mais envolvimento dos SMPC. Para mim, os SMPC são a charneira de todo este processo. Portugal deve ter meios aéreos próprios no combate aos incêndios e deve ser a Força Aérea operá-los? Portugal tem de ter uma frota de meios aéreos própria mais condensada e mais pesada e não me choca nada que seja a Força Aérea a operálos. Mas há uma coisa que é determinante: sendo Força Aérea ou privados, os elementos que vão fazer esse trabalho têm que ter formação. Os franceses também alugam meios aéreos, mas todos os pilotos que fazem a época de fogos florestais obrigatoriamente passam pela escola de bombeiros. Um meio aéreo no ar custa muito dinheiro, pelo que temos de tirar a máxima eficiência do equipamento. Como tal, o piloto tem de perceber o que é que o homem que está em terra quer, caso contrário é uma descarga perdida. Este é o aspecto que deveria ser mais bem explorado. Tive uma reunião com a Força Aérea há cerca de três semanas e alguns militares vão fazer formação à ENB exactamente para que percebam qual é a linguagem dos bombeiros e para nós percebermos a sua linguagem.
Há simulacros nas escolas para sismos e ensina-se suporte básico de vida. Não se deveria começar a ensinar técnicas de protecção contra incêndio e o que fazer nessas situações?
Precisamos de dinamização. O SMPC pode desencadear todo um projecto de envolvimento para essas actividades. É preciso começar a sensibilizar desde pequenos. Muitas vezes as pessoas não sabem agir em coisas tão simples como uma chama que se levanta quando se está a fazer fritos. Isto passa por educação ambiental e para a protecção civil e o grande elemento mobilizador tem de ser local, que são, para mim, os Serviços Municipais de Protecção Civil.
Quando foi autarca apostou mais nos SMPC?
Na altura nem se falava de SMPC, mas digo com muito orgulho que instalámos uma rede privativa de comunicações de protecção civil em Porto de Mós. Se nos queixámos no ano passado do SIRESP, então naquela época só de pombo correio é que falávamos uns para os outros nas serras. Já com alguma sensibilidade para isso, tinha a trabalhar comigo o comandante de bombeiros. Fomos dos primeiros concelhos a ter um plano municipal de ordenamento da floresta e um plano municipal de emergência. Lembro-me que na altura chamaram-me maluco, tal como quando disse que Porto de Mós precisava de uma helipista. Construiu-se em 2002 e hoje está a trabalhar. Ainda bem que o tempo me deu razão.
Depois de Pedrógão, Monchique mostrou que a preocupação foi garantir a defesa das pessoas. Não pondo em causa que a vida humana está acima de tudo, o combate não deve ter também em conta a floresta?
A floresta também tem de ser defendida. Naturalmente que entre uma vida humana ou uma dúzia de eucaliptos, primeiro está a vida humana. Estamos numa fase de aprendizagem. Voltemos à história: em 2013, Portugal teve nove bombeiros mortos. A partir dessa data trouxemos muito para a formação e os dez princípios que os americanos usam para a defesa e a segurança dos bombeiros. Isso hoje é doutrina. Se calhar não podemos cair no extremo oposto, o que depende muito de quem está a comandar no terreno. Se há condições, os bombeiros devem meter-se na floresta. Muitas vezes fazemos análises que não são as mais correctas. Por exemplo, ouvese dizer que os bombeiros estão ali sem fazer nada. Temos de perceber que um teatro de operações tipo Monchique, em que estão envolvidos mais de mil elementos e que têm apoio de bombeiros que estão a chegar de Leiria, Aveiro ou de outro sítio qualquer, quando chegam ao local levam uma série de horas de viagem em cima. Se calhar têm de primeiro descansar duas ou três horas e depois render quem está no terreno há mais tempo.