Leia aqui a primeira parte da entrevista.
Existe um Portugal antes de Pedrógão e pós-Pedrógão?
É inegável. O efeito de Pedrógão obrigou a que haja uma responsabilização de todos, não só de quem comanda incêndios ou toma decisões políticas. Toda a gente sentiu na pele aquilo que as pessoas sofreram. Não digo que este pós-Pedrógão seja um novo acordar, mas a verdade é que algumas pessoas acordaram para uma problemática que não lhes dizia nada. Só viam os incêndios na televisão. Em 2017 toda a gente foi afectada directa ou indirectamente. Temos que aproveitar esse efeito agora, daí a necessidade de manter isto bem vivo nas pessoas. Não é o sofrimento e a dor que sentiram, mas a necessidade que temos de nos comprometer com esta mudança e de contribuir para que isto não volte a acontecer.
Foi um abanar de consciências? Sim. Precisamente porque temos que ter consciência que isto pode acontecer a qualquer pessoa. Pensar que moro na cidade e que isto não me vai acontecer é complemente irreal. Houve turistas que morreram no incêndio. Se pensarmos, para o nosso território e para a nossa realidade, a maior ameaça que temos são os incêndios rurais.
A AGIF vai estar no teatro de operações no apoio à decisão. Na prática não irá criar alguns confrontos?
O nosso objectivo não é colocarmo-nos em bicos dos pés e dizer que somos os peritos, por isso é que estamos a ir ter com as pessoas para lhes explicar o que andamos a fazer e a desmistificar o que é a AGIF. Houve um concurso nacional e quem quis concorreu. Muitas destas pessoas já estão no sistema. O que pretendemos é dar ferramentas para alguém decidir. Nos dias de hoje temos muita informação que vai desde a cartografia, à meteorologia, ao histórico de incêndios, recursos e técnicas. Queremos juntar todo este conhecimento, filtrá-lo e disponibilizar a quem está a tomar decisões. As decisões passam a ter fundamentação e deixam de ser com base num processo meramente empírico ou sustentado nas comunicações que vêm do teatro de operações. Se as pessoas perceberem que se se apoiarem nos peritos só têm a lucrar, vai correr bem.
A AGIF não pretende apontar culpados na avaliação que fará, mas o que se está a fazer com Pedrógão. Faz sentido?
Não desta forma. Sempre que algo corre menos bem o que me interessa saber é por que é que correu menos bem, não é quem é que levou a que aquilo tivesse corrido menos bem. Isto aconteceu em incêndios com vítimas mortais. Queremos tirar conclusões para perceber qual a medida correctiva. Isto é que são lições aprendidas e isto é que é evolução. Estar mais preocupado em culpar alguém porque aconteceu o que aconteceu em Junho e Outubro não vai solucionar o problema. Se houver condenados, com pena suspensa ou efectiva, se calhar muitos de nós, que estamos há muitos anos nestas funções, começamos a pensar três ou quatro vezes em assumi-las. Claro que temos de estar capacitados, ser responsáveis, dar resposta e cumprir, e devemos ser avaliados por isso. Mas não pode ser uma caça às bruxas desenfreada, destruindo a vida de pessoas que estão há 20, 30 e 40 anos neste sistema, a dar tudo de si para proteger as pessoas que, infelizmente nesses incêndios, acabaram por falecer. Devemos perceber por que é que o sistema falhou, mas não por que é que o indivíduo falhou, porque na prática o sistema é que é responsável [LER_MAIS] por esse mesmo indivíduo. Se ele não tomou uma decisão, se agiu mal ou não reagiu como era suposto, foi esse mesmo sistema que não criou condições para isso. Tem de ser o próprio sistema a ser condenado. Esse é que tem de dar resposta para que aquilo não volte a acontecer. Isto tem repercussões, sobretudo, no voluntariado. As pessoas começam a pensar: sou voluntário, estou lá para ajudar a dar uma resposta que quem tem essa obrigação não consegue e depois vou ser condenado por algo que alguém que deveria ter feito não fez. Deveríamos estar a incentivar precisamente o inverso, mas para isso tenho de dar condições às pessoas que querem ser voluntárias ou querem integrar uma força profissional. Era isso que deveríamos ter aprendido com Pedrógão. Não estou a contestar a aplicação da lei nem o nosso sistema judicial, mas são pessoas que merecem o máximo de respeito.
Recentemente, Domingos Xavier Viegas referiu que falta formação em termos gerais aos comandantes de Bombeiros. Concorda?
Não diria que falta formação. Uma coisa é ter formação, outra é ter experiência e fundamentar essa formação. Todos os elementos de comando dos corpos de bombeiros receberam formação na Escola Nacional de Bombeiros. Se esta formação é boa ou má, se calhar temos de avaliar. Mas isto é como tirar a carta de condução. Habilita-me a conduzir, mas não significa que já saiba conduzir como um expert. É preciso experiência e isso demora anos a adquirir. No distrito de Leiria conto pelos dedos de uma mão só os elementos de comando com 20 anos de experiência, porque a rotatividade é tão elevada que não permite dar tempo para que se formem pessoas para o processo de tomada de decisão em incidentes graves. Isto é um problema grave do sistema. Quando se fala em estágios profissionais noutros sectores, se calhar devíamos pensar em estágios para comandar e coordenar uma operação. Temos pessoas muito capazes nesta estrutura, mas temos que lhes criar condições. Não é toma lá és comandante, agora desenrasca-te.