Leia aqui a segunda parte da entrevista.
Foi criada a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), que assume a coordenação estratégica do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR). O que vai fazer na prática?
A AGIF aparece por indicação das duas comissões técnicas independentes, que consideraram que era necessária uma entidade que fizesse a coordenação entre a componente política, operacional, de estratégia e de manobra. O grande chapéu da AGIF é o planeamento, a coordenação estratégica e a avaliação do sistema. Estamos a fazer um novo plano nacional, que vem complementar o Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios, e que não se cinge a medidas meramente preventivas. Foca-se na prevenção, mas faz a relação com o combate. Vamos ser facilitadores do conhecimento entre todas as entidades que colaboram directamente com os incêndios rurais, ajudamos no planeamento, na antecipação e na tomada de decisão. É nesses focos que vamos estar, adoptando uma postura de coordenação e colaboração. A AGIF não está aqui para mandar em ninguém. É uma agência que está sob a tutela directa do primeiro-ministro, pelo que é também o seu braço direito na tomada de decisão relativamente aquilo que são as políticas dos incêndios rurais, mas o comando das operações mantém-se dentro da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC). Não podemos estar a alterar consecutivamente medidas, políticas, planeamento e directivas sem que sejam avaliadas. Temos coisas muito boas que funcionam e que devemos manter, mas temos outras que devemos reavaliar para que possam evoluir. O último processo nesta cadeia de valor é precisamente as lições aprendidas. Queremos que haja uma consequência. Não é só dizer que errei. É preciso identificar o que falhou e o que fazer para alterar.
A AGIF vai contribuir para que se fale a uma só voz?
Esse é o nosso principal objectivo: independentemente da farda, toda a gente está perfeitamente identificada com os objectivos do plano, com as metas a atingir e como as concretizar. É por isso que temos que ter a garantia que todas as entidades percebem qual é o seu papel e que não há elos fracos. Até agora tem havido a tendência de criticar este ou aquele. Temos de deixar de pensar que os incêndios só acontecem em determinada parte do território e em determinada altura do ano e não posso estar focado apenas no combate. Tem de haver um investimento muito grande na área da prevenção e ambos têm de estar obrigatoriamente interligados.
Falou na necessidade de um investimento na prevenção. Há verbas?
Em 2018 houve uma verba que foi disponibilizada para acções preventivas e gastaram-se zero euros. Aquilo que se quer é executar as verbas disponíveis. Temos que ter a consciência que não temos recursos nem oportunidade em termos de meteorologia para gerir a totalidade do combustível no país inteiro num ano. Pretendemos fazer um planeamento de forma a fazer uma gestão faseada de acordo com o crescimento mais acelerado ou mais lento numa região. Se fizer isto, tenho um orçamento mais equilibrado e garanto que as verbas vão ser aplicadas no sítio correcto. O grande desafio é conseguir gerir a paisagem, pois a longo prazo altera-se o clima.
Que tipo de paisagem devemos ter para prevenção de incêndios?
Não se trata de ter uma paisagem de monocultivo e defender que só uma espécie é que é segura. Se conseguirmos criar zonas de mosaico, utilizando espécies mais seguras ou mais resistentes à passagem do fogo próximo dos aglomerados, pode-se continuar a plantar as outras – porque são precisas economicamente – em zonas mais distanciadas, com faixas de gestão de combustível e caminhos. É lógico que se conseguir recuperar as práticas agrícolas que fomos perdendo ao longo dos anos, que criavam as faixas de segurança à volta dos aglomerados, tanto melhor. Agora é utópico pensar que de repente as pessoas vão todas voltar para o interior. Para que isto seja possível tem também de haver escala. É preciso juntar os proprietários e dizer-lhes qual o rendimento que podem tirar e a que fundos podem recorrer. É muito fácil dizer que há 40 milhões de euros, mas nem sempre as pessoas sabem como podem usufruir desses apoios nem como obtê-los. A nossa paisagem não tem de ser só floresta ou agricultura. Pode e deve ser melhorada e alterada com outras práticas como o turismo, o desporto e até a própria indústria, desde que se perceba que a alteração da paisagem tem muito a ver com o ordenamento do território. Não se pode permitir que se construa onde as pessoas querem porque tem uma vista bonita. Se o fizerem estão a colocar-se em risco e pode não haver capacidade para as proteger. Isto exige um grande compromisso que vai além de uma legislatura e de um governo. As pessoas têm de perceber que todos têm de fazer a sua parte. Os incêndios não afectam apenas quem está no interior ou nas partes mais rurais. Em 2017, sentimos na pele que também afectam o litoral e as cidades. Não mexendo na paisagem, a única coisa que se faz é acumulação de combustível. Se associar a isto os comportamentos da população, que continuam a usar o fogo de forma desregrada e às vezes irresponsável, tenho a 'tempestade' perfeita, tal como, infelizmente, sucedeu em 2017.
Falou que o plano iria complementar o que já existe. Quais as alterações que se esperam?
O plano define quatro grandes objectivos estratégicos: valorizar a floresta, cuidar do território, gestão eficiente do risco e modificação dos comportamentos. Deixámos de ter três pilares para ter dois eixos: a gestão do incêndio rural e a protecção contra incêndios rurais. Outra diferença é deixar de haver bombeiros da floresta e bombeiros da cidade. Os bombeiros vão continuar a fazer o combate ao incêndio rural, da mesma forma que os sapadores florestais vão ajudar na protecção de habitações. Mas, é preciso garantir que há pessoas focadas no incêndio rural, que o percebem e que estão perfeitamente alinhadas com o trabalho que foi feito no Inverno, quando se fez a gestão de combustível, e devemos pegar nisto como uma oportunidade a ser integrada no combate. Depois há que garantir a capacitação de todos. O objectivo não é serem todos profissionais, mas temos de ter forças preparadas para intervir 365 dias por ano – período em que temos incêndios rurais – com o devido [LER_MAIS] complemento do voluntariado.
A AGIF irá avaliar as situações de ineficácia ou ineficiência do sistema apresentando medidas correctivas.
Para avaliar tenho que estabelecer objectivos, pelo que vamos definir indicadores. Queremos recolher as informações e perceber se funcionou ou não. Não é vir apontar o dedo. Não queremos saber qual é a cara da pessoa nem a farda que veste. Não estamos preocupados com quem cometeu o erro. Queremos é propor uma medida correctiva para que não volte a acontecer. Temos de dar respostas e não é só ao primeiro-ministro de quem dependemos directamente, mas aos portugueses.
A distinção entre o solo rústico e o solo urbano não será difícil de fazer durante um incêndio, sobretudo nas áreas de interface urbano-florestal?
O comando das operações vai-se manter na ANPC, portanto, quem está a comandar a operação está a ter duas visões, porque não posso dissociar uma coisa da outra, principalmente com o tal (de)ordenamento do território. Criámos estes dois eixos porque queremos que haja uma força mais preparada para a componente florestal. A evolução que pretendemos é ter as pessoas certificadas e capacitadas para determinada missão. Isto significa que se tiver um grande incêndio sei quem são as pessoas capacitadas para o comandar e não é só porque é o comandante de um corpo de bombeiros ou um general. Comparamo-nos à Austrália ou aos Estados Unidos, erradamente. Eles têm incêndios que podem progredir 300 quilómetros em linha recta sem apanharem uma única habitação. Em Portugal, um incêndio desses arde de Este a Oeste do País e vai apanhar milhares de habitações. Por isso, queremos ter alguém mais focado na componente florestal e alguém que está focado na protecção de infra-estruturas, na salvaguarda de pessoas e animais. Isto não significa que os bombeiros não possam fazer parte desta componente mais florestal. Vamos ter corpos de bombeiros que vão ter equipas para a floresta e equipas para combater o incêndio no interface.
Ter sido comandante num dos principais corpos de bombeiros de Leiria é uma mais-valia para este cargo?
Sem dúvida. A minha experiência como segundo comandante e comandante acaba por ser extremamente importante para perceber todo este sistema. E foi pela experiência de 20 anos que trago dos bombeiros e da área da Protecção Civil que me terão escolhido. Esse meu passado dá-me vantagem quando decido algo, porque sei qual é a consequência e isso também me permite ter a perspectiva da componente humana. Sei o que é que aqueles homens e mulheres sentem quando estão no incêndio e o que custa estar no terreno. Isto tem de entrar na equação, porque as pessoas têm de ser motivadas, valorizadas e acompanhadas por quem está a gerir uma determinada operação, ou ela estará condenada ao insucesso.
É o responsável pela zona centro. É um grande desafio, tendo em conta que esta é uma das regiões habitualmente fustigada pelos incêndios?
É um desafio enorme. Primeiro porque me identifico muito com esta região, porque sou natural de Celorico da Beira e trabalhei muitos anos no distrito de Leiria, quer nos bombeiros, quer enquanto segundo comandante distrital da protecção civil. Durante cinco anos, percorri praticamente toda a zona centro e norte do País com o grupo de reforço em incêndios florestais. Isso deu-me uma visão das diferenças do território, dos diferentes comportamentos dos incêndios, das próprias pessoas e do tipo de combustível, que neste momento é extremamente importante. Os incêndios perto da costa, os de serra e os de vale têm combustíveis completamente distintos. Temos tudo isso na zona centro, que não terá o maior número de incêndios, mas os incêndios de maior dimensão. Para se tomarem decisões temos que ter esta visão do território.
Para realizar queimas e queimadas é obrigatório uma comunicação ou um pedido de autorização. Faz sentido?
Mais de 50% dos incêndios em Portugal têm origem em queimas e queimadas. Se é isto que vai resolver o problema? Na prática não, porque tem é de se conseguir que as pessoas percebam como é que se usa o fogo e até recentemente morreram pessoas a realizar queimas e queimadas, seja porque têm muita idade, porque o comportamento do fogo é diferente ou pelo índice de seca que temos. O fogo tem que ser utilizado ou então tenho que arranjar uma alternativa: destroçar os materiais, utilizar para biomassa, produção de energia… Mas para isso tenho que ter um sistema que consiga suportar isto, que ainda não existe. É importante saber onde é que as queimas e as queimadas estão a ser feitas, pois permite ter um controlo sobre os recursos. O que acontecia até agora é que alguém via uma coluna de fumo, ligava e iam todos os meios para o local. Mas antes disso é preciso ensinar as pessoas a usar o fogo e a prepará-las para o que fazer quando há um incêndio. Quando há cenários graves, como tivemos em 2017, todos temos percepção que não vai haver um operacional perto de cada pessoa. Aliás, vamos ter incêndios cada vez com maior potencial e mais dano. Há países que já assumiram isso e quando os incêndios chegam a determinado patamar não é para combater, é para sair dali e isto é também para o cidadão comum. Quando se diz que há um incêndio em tal sítio o objectivo não é que a pessoa vá ver, mas que se afaste o mais possível e esteja em segurança. É esta consciencialização que temos que trabalhar cada vez mais.
Bombeiro desde que nasceu
Luís Lopes, natural de Celorico da Beira, chegou a Leiria aos 9 anos. Filho de um bombeiro, o quartel era a sua segunda casa. Aos 2 anos já vestia o bivaque. Licenciado em Protecção Civil, concluiu no ano passado o mestrado em Dinâmicas Sociais, Riscos Naturais e Tecnológicos, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. “Comecei a ir treinar para os bombeiros com 11 ou 12 anos.”
O bichinho estava lá e aos 14 anos foi oficialmente bombeiro. Fez todo o percurso até chegar ao topo da carreira. Foi segundo comandante dos Voluntários de Leiria, saindo por quatro anos para ser segundo comandante distrital da protecção civil.”
De regresso aos voluntários, em 2017, assumiu o comando do corpo de bombeiros, de onde saiu para ser coordenador regional da região NUT II do Centro da AGIF. “Sou bombeiro com muito orgulho. É nestas casas que sentimos realmente qual o valor da vida humana, porque lidamos com as pessoas no seu momento mais frágil.”
O facto de ser filho de um bombeiro foi “uma grande vantagem”, mas também “uma pressão muito grande”, ou não fosse o seu pai “uma referência inegável nos bombeiros”. “Isso obrigou-me a querer ser cada vez melhor. A partir de determinado momento deixei de ser o filho do comandante.”
Com dois filhos de 4 e 8 anos, prefere que não sigam as pisadas do pai e do avô. “Não os vou impedir, se for isso que quiserem, mas não os vou incentivar. Ficaria preocupado não só por estarem expostos a riscos, mas também pelo sacrifício pessoal a que isso obriga.” Apesar de gostar de desporto, de cinema e de ler, nos últimos tempos tem optado por passar o máximo de tempo com os filhos. “É tudo tão rápido, que o meu refúgio é estar com os meus pequeninos.”