Fala sempre no plural, como se Manuel e Francisco Aires Mateus fossem, em termos arquitectónico, um só. Como funciona esta dupla?
Até determinado momento, trabalhávamos no mesmo espaço físico. Quando a equipa passou a ser maior, resolvemos separar-nos em dois espaços. Isso coincidiu também com o momento em que começámos a dar aulas juntos. Estabelecemos uma plataforma de discussão, que tem a ver com ideias, projectos e ensino. Temos hoje uma investigação conjunta, com desenvolvimentos que são feitos mais cá ou mais lá.
O curador Nuno Grande referiu- -se à vossa dupla como uma mistura de sensibilidade e bom senso. Com qual dos lados se identifica mais?
A sensibilidade é bom senso e bom senso é sensibilidade. Revejo-me numa boa relação entre os dois. Em arquitectura são dois conceitos que andam muito a par. São muito unos. O bom senso é fundamental em arquitectura. São processos muito longos, complexos, que envolvem imensa gente e muitos meios. A sensibilidade é uma gestão dessa condição. Para a maior parte das famílias, a casa é o maior investimento que fazem na vida. Isso exige imenso bom senso e uma sensibilidade muito grande ao problema. O mesmo se aplica quando pensamos na cidade. A cidade é o lugar de todos. Exige muito bom senso e sensibilidade.
Trabalhou vários anos com Gonçalo Byrne. Que ensinamentos lhe ficaram desse tempo?
A minha grande formação foi feita ali. Gonçalo Byrne é o homem do saber. Um conhecedor. Tem uma biblioteca fabulosa e uma memória prodigiosa e invejável. A memória é uma coisa muito importante, que temos de aprender a saber construir. A memória verdadeira, aquela que nos funda. E o Gonçalo tem essa memória. Foi o homem que me despertou para o problema do lugar, da história, da ideia da verdade do projecto em cada projecto, uma série de coisas que se tornaram para nós axiomas e fundamentais. Além de ser a pessoa com quem aprendemos o ' beabá' e as coisas técnicas.
Quais são as suas referências na arquitectura?
Vivos, refiro o Siza [Vieira], que é o homem da arquitectura sensível, da surpresa, do movimento no espaço, e [Peter] Zumthor que é o homem da arquitectura construída, da ideia da materialidade, com tudo o que isso envolve. Entre os mortos, há uma série de arquitectos que nos tocam muito, como Borromini, barroco, da liberdade entre interior e exterior, da expressão, da ideia da espessura da própria materialidade, da construção do limite como valor único, da gigantesca possibilidade da liberdade. Sempre foi uma referência para nós. Há também Palladio, Schinkel ou Mies, que são uma espécie de poética matemática.
[LER_MAIS] Dos inúmeros projectos que já assinou, quais os mais marcantes?
Há três projectos que marcaram uma viragem no nosso trabalho. Vínhamos de uma sequência boa, após a entrada na CEE. Mas, houve um momento em que ficámos em crise. Não era uma crise genérica, era nossa. Ficámos sem trabalho. Parámos, voltámos a repensar e a redesenhar tudo o que tínhamos feito. Um trabalho quase introspectiva. No fim disso, fizemos três casas. Uma delas, a Casa de Alenquer, é uma casinha dentro de umas ruínas, que caiu a meio da obra. Recuperámos metade da ruína para fazer uma piscina. A casa ficou a dialogar com a outra parte da ruína. A Casa de Azeitão é outra obra deste período. Tratou-se da recuperação de um antigo armazém de vinhos. O programa centrou-se na ideia de como é que a luz pode flutuar em torno do espaço. O terceiro projecto foi uma casinha no Alentejo para um casal muito convencional. Seria a primeira de quatro casas, que tinham uma sala e pequenos quartos à volta. Funcionava como uns muros habitados com a sala no meio.
Por que é que esses projectos foram marcantes?
Começámos a perceber que podíamos ter condições para a levar ao limite e obter significado com a construção. Retrospectivamente, estes são os trabalhos mais importantes. Hoje, o mais importante é Lausanne [Museu de Design e Arte Contemporânea], o maior concurso internacional que ganhámos. É tecnicamente o trabalho mais desafiante e mais complexo que temos. É muito difícil distinguir projectos. Os trabalhos têm de ser feitos em risco. Falo do risco artístico. Se não tivermos essa possibilidade de errar, do ponto de vista artístico, não temos a possibilidade de acertar. Vamos fazer um projecto repetitivo, uma coisa que é mecânica. A arquitectura tem de ser feita em risco. O que nos interessa, mais do que tudo, é a condição identitária de cada projecto.
Formado pela Faculdade de Arquitectura de Lisboa, Manuel Aires Mateus trabalhou sempre em conjunto com o seus irmão Francisco, um ano mais velho e igualmente arquitecto. A ligação é tal, que durante toda a entrevista o Prémio Pessoa 2017 fala sempre na primeira pessoa do plural.
São da sua autoria os projectos de renovação da sede da Ordem dos Engenheiros, o edifício sede da EDP e o Centro de Criação Contemporânea Olivier Debré, em Tours (França). Em 2015, ganharam o projecto para Museu de Design e Arte Contemporânea em Lausanne (Suiça), orçado em mais de 85 milhões de euros, ‘derrotando’ três prémios Pritzker (o chamado Óscar da Arquitectura mundial) que também se candidataram.
Dão aulas na Academia di Architettura de Mendrizio, na Suíça, e na Faculdade de Arquitectura de Lisboa.