No design de produto, hoje, falta o humor e a fantasia que vemos, por exemplo, nalgumas peças de Raphael Bordallo Pinheiro, em Caldas da Rainha?
A escola das Caldas, a ESAD, sofre essa influência por via de um professor, que é o Fernando Brízio, que brinca com as formas e a sua relação com os objectos. Tem, por exemplo, um banco que se chama pata negra, que é preto e tem pés de porco, como se de um presunto se tratasse. Acho que continua a existir brincadeira, se bem que, à medida que as coisas se tornam cada vez mais sérias, deixa de haver espaço para que isso aconteça.
Humor é humor, design é design?
Depois da entrada na União Europeia, e no pós-cavaquismo, havia todo um optimismo subjacente a esse período. Traçando um paralelo socioeconómico: havia espaço para brincar, para explorar, para fazer coisas que divertiam o público, mas, sobretudo, iam ao encontro das necessidades do intelecto de uma disciplina. A minha geração já vem começar num momento de crise. Percorreu desde a reforma da minha avó ao que os meus pais recebiam e às minhas expectativas de trabalho. Portanto, deixou de haver tanto espaço para se brincar com as coisas sérias.
Nem que seja porque os designers também precisam de ganhar a vida. Era mais difícil arriscar?
O único risco que podias correr era emigrar.
Ainda assim, há o Cristo Purificador, em que o Paulo Sellmayer brinca com coisas sérias.
Muito por influência do Fernando Brízio, meu professor. E tenho outro projecto final, também, que era uma espada guarda-chuva. Mas a partir daí as coisas tornaram-se, por um lado, mais sérias, por outro, menos visíveis. O trabalho que paga os ordenados não é o mais visível.
O País está na moda, à escala internacional, por várias razões, do turismo às figuras públicas que aqui fixam residência. Quanto vale o made in Portugal nos salões internacionais do design?
Depende sempre de sector para sector. Esse ganho de visibilidade é transversal à sociedade portuguesa. O calçado português já é o segundo mais caro no mundo e ostenta orgulhosamente o made in Portugal. Isto quer dizer o quê? Uma peça média em Portugal hoje vale mais do que valia há 10, 15, 20 anos. A criatividade já se impregna no tecido industrial e há uma aposta cada vez maior na comunicação, no desenvolvimento de produto próprio, que sem o design não seria possível. Já me foi dito, em feiras, e há muitas marcas portuguesas a exporem em feiras internacionais comerciais, que na cena do design Portugal está prestes a explodir.
Concorda?
Houve uma curva de aprendizagem, e de educação, também, ou seja, vínhamos atrasados nalguns aspectos, que está a culminar num conjunto de factores que podem ser benéficos para que isso aconteça.
No design de produto, há características ou factores intrínsecos dos criadores portugueses?
Não existe assumidamente um design português, com identidade estritamente portuguesa, mas, o que há, pode ser vinculado à arquitectura portuguesa do Fernando Távora, do Siza Vieira, do Jorge Mateus e do Souto Moura, que professam aquele português suave, ou seja, estamos a falar de linhas simples, modernas, objectivas, práticas, que já representam grande parte do design que se faz em Portugal. Por outro lado, temos um design de produto português se calhar mais cómico, bem feito, que ainda está em formação da sua própria identidade.
Como é que olha para a democratização do design através de mobiliário com toque escandinavo num país do Sul da Europa?
Como portugueses, somos os principais causadores da globalização. Agora, devem ser criadas condições para que surja e seja cultivada uma identidade estética própria, da manufactura, da cultura material, que é o que aqui estamos a falar. A cultura abrange vastos campos e um deles é a expressão das nossas casas, dos nossos carros, da nossa roupa, que ao ser evidentemente escandinava faz com que a nossa identidade se perca. E somos péssimos a construir a identidade portuguesa.
Que valor podem as indústrias criativas gerar para o território onde estão inseridas?
Está a ser cada vez mais estudado, em diferentes países, que as indústrias criativas têm um reflexo no PIB muito grande, sobretudo, porque são baseadas no conhecimento cultural, ou seja, numa valorização que não pode ser quantificada em termos materiais, mas sim pelo valor cultural que é atribuído ao trabalho destas indústrias criativas. Têm um valor intangível. Todo o ganho é lucro. Poderiam ser o nosso petróleo. Portugal devia apostar sobretudo na valorização da sua cultura, industrial, criativa, de identidade nacional, sobretudo urbana, porque é o que tem para alimentar o turismo e para alimentar as exportações.
Existe algum dever das gerações mais novas em preservar e reinventar os ofícios tradicionais, em especial nas regiões onde trabalham?
Defendo que o trabalho deve reflectir o ambiente em que estamos inseridos, seja pelos ofícios, pelos materiais, pelas pessoas que nos rodeiam. É uma maneira sustentável de fazer as coisas.
Onde fica o design de produto num mundo cada vez mais digital e desmaterializado?
Vai haver cada vez mais coisas feitas digitalmente, por impressoras 3D, fabricadas localmente, com desenhos enviados de qualquer parte do globo. Por outro lado, e paralelamente, vai haver sempre coisas feitas à mão, para envelhecer, de geração para geração. Gostaria que as coisas funcionassem muito mais vezes do que funcionam, ou que fossem arranjadas muito mais vezes do que as que são mandadas para o lixo. Somos todos cada vez mais consumidores responsáveis, no mundo ocidental, mas também somos consumidores desenfreados. E às vezes de coisas que nem sabemos de onde vêm e como foi feito.
É mais do lado do amar uma peça e mantê-la até ao fim dos nossos dias.
Sou muito do lado ético do como é feito e como vai ser destruído. Nós temos de resolver a questão ambiental de todos os dias estarmos a produzir cada vez mais coisas em excesso e não conseguirmos transformá-las.
Qual é a alternativa?
Trabalhar para que os produtos consigam estar inseridos numa economia circular, ou seja, ir buscar produtores locais, tornar as coisas recicláveis ou reaproveitáveis e contribuir para uma cadeia de valor local.
Projectos como este onde estamos, na Reixida, com músicos e designers a ocuparem edifícios industriais, podem inspirar outros espaços e fixar mais criativos no concelho de Leiria?
Falta um espaço onde as indústrias criativas se sintam em casa, em Leiria, e que possam sentir-se apoiadas por criarem valor para a região, para a indústria e para a cidade. Leiria é uma cidade sem amor às indústrias criativas.
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Depois da crise na indústria do vidro e da cerâmica, o que fica como herança para quem está agora a entrar na profissão?
As empresas que sobreviveram tinham características que as fizeram sobreviver. E aprenderam a lição de não cometer os mesmos erros dos seus pares, mas, também, de crescer sobre os erros que cometeram. Os designers que agora colaboram com essas empresas já não recebem uma atitude desencorajadora de ideias novas. De certa forma, instaurou-se um processo criativo e construtivo mais colaborativo, tanto entre empresas, como entre empresas e designers, que ainda assim precisa de ser muito fomentado.
Falta capacidade de diálogo entre a indústria e os designers?
Sim, há falta de diálogo colaborativo entre as empresas e as indústrias criativas.
Não falam a mesma língua?
Tem a ver com atitudes. Em Leiria, por um lado, as empresas dão lucro, não há necessidade de procurar um factor diferenciador pelo design. Há falta de investimento por parte do sector industrial local nas indústrias criativas, na cultura e na criação. Porque, lá está, a cultura cria qualidade de vida. Falta, de facto, um reinvestimento na inovação e essa inovação passa muito pelas indústrias criativas.
O projecto Off Portugal está a conseguir estabelecer pontes entre os novos talentos do design de produto e as pequenas e médias empresas?
Podemos intervir a dois níveis: definir por causa efeito que isto para aquela empresa deu quanto, ou então, uma alavancagem mais emocional, e aí surtiu um efeito muito bom, tanto no interesse dos designers em trabalhar com a indústria vidreira, como das empresas. Alavancar pela emoção, tornar a coisa apelativa, também é muito importante.
O melhor design vive mais da emoção ou da funcionalidade? Ou de ambos?
Vive de ambos.
Não há bom design sem despertar emoções?
Não acredito. Talvez para pessoas muito frias.
Faltam marcas na indústria portuguesa?
Faltam. Vamos ainda sofrer o efeito durante muitos anos de a única marca portuguesa ser o futebol. É às vezes difícil comunicar aquilo que Portugal é bom a fazer. Portugal é dos maiores produtores de cerâmica da Europa e a Vista Alegre é inexistente lá fora. A estratégia para que haja um incremento cada vez maior dos produtos vendidos, e consequentemente das exportações, passa por ter marcas fortes, por ter apostas em marketing que façam sobressair o melhor que os produtos têm. Há sectores que o conseguem fazer melhor do que outros.
Perfil: do cálice Splendidor ao Cristo Purificador
O cálice Splendidor é a reinterpretação, por Paulo Sellmayer, do icónico Copo de Bicos da fábrica de vidros Atlantis. Concebido em parceria com a Vista Alegre para o programa da Guimarães Capital da Cultura, em 2012, faz hoje parte da colecção do Museu do Design e da Moda, o Mude, em Lisboa. Outro objecto criado por Paulo Sellmayer que sai da tradição para novos caminhos é o Cristo Purificador, um ambientador de automóvel que funde os adereços mais populares nos retrovisores dos carros em Portugal, até há alguns anos: crucifixos e pinheiros. Formado em Design Industrial pela Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha (ESAD. CR), com mestrado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, Paulo Sellmayer tem trabalhado como designer de produto e é o director criativo da marca Vicara, com sede em Leiria. Foi investigador do Centro para o Desenvolvimento Rápido e Sustentado de Produto – CDRsp e integra o projecto Off Portugal, que pretende levar novos talentos portugueses, sobretudo no sector do vidro, aos principais salões internacionais do design.