A entrevista a José Sócrates é o momento mais alto do Fumaça?
Foi um momento importante, não só pelo convidado, por ele ser quem é, mas também porque as pessoas não estavam à espera que uns meninos de pulôver, como no Governo Sombra o Ricardo Araújo Pereira dizia, fossem capazes de fazer uma entrevista com aquela profundidade. A entrevista teve quatro meses de preparação. Eu não estive envolvido, mas nós tínhamos 30 páginas de guião, de contexto, de perguntas, de tudo aquilo que tinham sido as promessas. Em Portugal, depois de os governantes saírem dos seus cargos, de repente há uma espécie de vácuo, como se eles não tivessem responsabilidades. Mas nunca se lhes pergunta "espere lá, você aqui há cinco anos disse isto e fez aquilo. Por que é que fez? Mentiu? Não mentiu?" Nunca há essa responsabilização e nós tentámos fazer isso.
Estavam preparados para ouvir um antigo primeiro-ministro dizer que ele próprio não estava preparado para um exame tão minucioso?
Essa parte é muito interessante, só mostra como de facto os políticos estão mal habituados. Quando ele fala em arqueologia política, que é uma expressão que eu acho que foi usada para desmerecer, de alguma forma, aquilo que estava ali a ser feito, para nós foi um elogio. Acho que ele ficou surpreendido e atrapalhado em algumas perguntas porque não estava à espera daquele tipo de questões. Achava que ia fazer um passeio na praia e debitar a sua narrativa e não ser contraditado.
Como é que alguém como o Pedro Miguel Santos, que esteve na organização dos protestos nacionais que ficaram conhecidos como Geração à Rasca, em 2011, no contexto das medidas de austeridade do último governo de José Sócrates, olha agora para os protestos dos coletes amarelos?
Acho que são incomparáveis, em primeiro lugar, porque o momento político é muito diferente. Estávamos numa escalada galopante do desemprego, havia um conjunto de medidas bastante injustas, havia mais pessoas a emigrar e a precariedade afectava todas as pessoas que estiveram nesse núcleo que iniciou a manifestação. Depois, as pessoas deram a cara, essa é uma grande diferença. Não era uma coisa tão difusa como os coletes amarelos e nunca foi contra a política, porque nós tínhamos todos consciência de que a convocatória que estávamos a fazer era absolutamente política. Mas não era partidária.
Quando há um défice de participação cívica, os movimentos extremistas tendem a ocupar o vazio, por exemplo, nas ruas?
Não tenho a certeza disso. Algumas das reivindicações dos coletes amarelos [em Portugal] eram absolutamente justas: aumentar o salário mínimo, baixar impostos, um serviço nacional de saúde decente. Esse descontentamento existe quando as soluções governativas, como aquela que existe hoje e que supostamente é de esquerda, não dão a resposta que deviam dar, porque a extrema-direita não vai para as ruas e não entra na cabeça das pessoas como um ideário se as pessoas estiverem bem. Este medo que existe da extrema-direita, e que acho que tem de existir, e que é concreto e real, porque está a acontecer pelo mundo fora, existe porque as pessoas não têm condições de vida decentes e a sociedade é cada vez mais injusta e desigual.
O que o Fumaça procura, quando anuncia jornalismo independente, progressista e dissidente, é intervir civicamente e desencadear mudanças na sociedade?
Se elas forem provocadas por um trabalho jornalístico, nesse sentido, sim. Mas o que procuramos é um tipo de jornalismo que achamos necessário e que achamos que se faz pouco: ir ouvir faixas da população menos ouvidas, falar de temas em profundidade que são pouco falados. Não queremos propriamente dar notícias em primeira mão, queremos explicar o porquê das coisas. Progressistas, porque acreditamos nos direitos humanos e que toda a gente deve ter direitos humanos assegurados.
Portugal pode ser considerado um exemplo em termos de consagração dos direitos humanos fundamentais?
Há graves problemas, ainda. Vamos pôr em contexto: entre aquilo que é o mundo e a maneira como tantos milhões de pessoas não têm as mínimas condições de vida e decência asseguradas, é evidente que estamos muito bem em Portugal. Agora, há um conjunto de pessoas em Portugal, nomeadamente gente que vive na periferia das grandes cidades, a população negra, os ciganos, os imigrantes, que vêem violados todos os dias em Portugal os seus direitos mais básicos. A maneira como a polícia se comporta nos subúrbios das grandes cidades e nos bairros municipais é quase um estado de excepção.
O que contribui para a persistência das desigualdades?
Não há fiscalização de quem tem de fazer aplicar as leis. É achar-se que há pessoas de primeira e pessoas de segunda, achar-se que os ciganos são pessoas de segunda e portanto podem viver num sítio qualquer, acharse que a população negra e que a população imigrante está cá para nos servir, para limpar as nossas casas, para cozinhar a nossa comida, e, portanto, também pode estar num sítio qualquer, desde que não estrague o centro das nossas cidades. Há muito que fazer. O racismo estrutural não se combate com medidas de cosmética, combate-se tentando assegurar que todas as pessoas são consideradas pessoas em toda a sua dimensão.
Temos um problema de racismo estrutural em Portugal?
Claramente. E temos sobretudo na forma como os políticos entendem a acção da escola, achando que não tem de falar sobre isso. Fomos colonizadores, fomos esclavagistas e explorámos meio mundo durante séculos. Não se quer falar sobre isso. Quem tinha obrigação de o fazer, que é quem tem responsabilidade política, continua a fazer de conta. O caso da Cova da Moura: perceber que há uma esquadra de polícia que reiteradamente faz raides num bairro para espancar pessoas, que tortura… Há um discurso de poder e uma retórica de violência, e, provavelmente, um conjunto de gente com ideais de extremadireita inflitrados nas forças de segurança e nos militares, não tenho a menor dúvida sobre isso.
Tem havido conivência do poder?
Completamente. Há conivência, porque não só a Inspecção Geral da Administração Interna faz de conta que não há estes problemas, como a triagem e a formação que tem de ser dada à polícia… vamos lá ver, a polícia existe para proteger os cidadãos. O que se vê são algumas forças de segurança, e não são todas, como é evidente, mas em alguns sítios concretos, com algum tipo de esquadras de polícia ou de corpos especiais da polícia, há uma cultura total de impunidade.
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A austeridade dos últimos anos em Portugal tem atacado os pilares da democracia?
Eu acho que a austeridade é anti-democrática. Sempre que é aplicada, ela é muito pior do que era anunciada. Distorce-se completamente o mandato popular, a confiança, o voto, e faz-se o contrário. Os estudos mostram que as pessoas mais prejudicadas durante a austeridade foram as pessoas que menos tinham. Nem sequer foi a classe média, foram os mais pobres que mais sofreram com a crise. Portanto, quando não se resolve o problema das pessoas, é natural que as pessoas, mais tarde ou mais cedo, percam uma certa relação de confiança, e até de respeito, no sistema de representação democrática, e comecem a achar que já não acreditam em ninguém – seja de que partido for, da esquerda à direita – e que querem alguém que venha dizer as alarvidades e as barbaridades que diz o Bolsonaro ou o Trump ou o Orban ou o Duterte e de repente venha com uma espécie de discurso salvador do "vou queimar isto tudo, rebentar isto tudo", quando é mais ou menos a conversa da raposa a guardar o galinheiro. A gente já sabe que quando aparece uma pessoa destas são sempre os mais pobres os primeiros a levar, são sempre os mais discriminados e as franjas mais frágeis que comem por tabela porque é sempre preciso arranjar um bode expiatório.
Este Governo apoiado por partidos de esquerda também tem uma receita de austeridade que está a aplicar?
Eu acho que a austeridade não acabou, acho que ela é diferente.
Explica tanta crispação social e contestação?
A contestação é um sinónimo de vitalidade democrática. Significa que já saímos do nível da sobrevivência e já estamos ao nível de começar a viver, e, portanto, estamos a reivindicar um conjunto de coisas. Como este Governo, quando entrou, deu a ideia de que ia cumprir uma série de coisas contrárias àquilo que o outro tinha feito, e como estamos em ano eleitoral, toda a gente agora se chega à frente e diz "meus amigos, vocês dizem que isto está tudo melhor, portanto, queremos a nossa parte perante os sacrifícios todos que estivemos a fazer". Há um cobrar de promessas.
Um dos temas do Fumaça têm sido as minorias LGBTI. Portugal defende as liberdades destes grupos?
Portugal fez um grande caminho, sobretudo legislativo. O que falta mudar, como falta com a questão dos ciganos, das pessoas negras, da imigração, é a educação. Falta explicar às pessoas, às crianças, sobretudo aos professores e às pessoas que estão nos hospitais e nos serviços públicos, que não somos todos iguais. Não somos todos brancos, heterossexuais e homens. As pessoas são muito diferentes e há um conjunto de regras básicas que têm de ser aplicadas a toda a gente. Tem de se dar formação, tem de se explicar que a diferença não é má. Não temos todos de nos comportar da mesma forma. É preciso educação para a alteridade, mais do que tolerância. Porque essa coisa do "eu até os tolero, mas se estiverem longe da minha vista, melhor", é o que ainda existe.
Mantém laços estreitos com o concelho de origem, Porto de Mós. Como avalia a qualidade do poder autárquico na região?
Antes de estar no Fumaça, trabalhei numa associação de defesa do ambiente em que lidei com muitos autarcas. Acho que, em geral, há muitos muito mal preparados. Continua a haver um imenso caciquismo e uma maneira de entender a representação política completamente errada, que é achar-se "eu é que mando" em vez de "eu estou momentaneamente num determinado cargo cujo objectivo final é fazer com que a vida das pessoas seja melhor". Confunde-se muito responsabilidade com poderzinho e com tiques bafientos e salazaristas que vêm desse tempo, ainda. Felizmente temos limitação de mandatos e isso faz com que haja renovação. Há cada vez mais autarcas mais novos, mas também continua a haver um conjunto de micro-redes locais dos aparelhos e das pequenas jotas e de um conjunto de gente que o que quer, de facto, é um cargo de poder. Uns querem uns tachos, e não são minimamente qualificados, outros querem ser os reizinhos da sua rua ou do seu bairro. E estão muito pouco preparados para serem questionados. Temos muito que caminhar, também no poder autárquico, que é muito importante.
Pedro Miguel Santos, 31 anos, originário da Corredoura, no concelho de Porto de Mós, é director do projecto jornalístico Fumaça. Em Novembro último, tornou-se um dos 10 vencedores da primeira edição do programa de bolsas de investigação jornalística da Fundação Calouste Gulbenkian. Diz que "o trabalho é uma paixão" – e não custa acreditar, se soubermos que criou um jornal de parede no primeiro ciclo, aderiu ao clube de jornalismo no ensino secundário e colaborou na fundação da rádio universitária Iplay nos anos da licenciatura em Comunicação Social e Educação Multimédia, no Politécnico de Leiria. Antes do Fumaça, esteve na associação ambientalista Geota e fundou a Academia Cidadã, na ressaca dos protestos da Geração à Rasca, que ajudou a organizar, em 2011. Também escreveu na revista Visão. Actualmente vive em Lisboa, mas regressa à Corredoura com regularidade. Para estar com a família e brincar com os sobrinhos. Fora do trabalho, em Lisboa ou Porto de Mós, evita rotinas. "Estou com os meus amigos, bebo copos, danço, cozinho, faço jantares. Por acaso devia dançar mais, significa que tenho andado a sair pouco".