Zé Pedro… Conhecia bem o guitarrista dos Xutos & Pontapés?
Conheci-o muito bem. Fui editor dos Xutos muitos anos e viajei com eles para Macau. Foi um músico que conheci bastante bem e de quem fui grande amigo.
Ele era uma espécie de Keith Richards português?
Sim. Embora não goste muito de fazer comparações desse tipo. O Zé Pedro era a cara, a alma dos Xutos & Pontapés. Quando fechamos os olhos e pensamos na banda, a cara que nos vem à cabeça é a do Zé Pedro. A imagem e o carisma dele. Era uma pessoa encantadora e que tinha essa particularidade. Era talvez de todos os elementos dos Xutos aquele que tinha mais carisma. Era uma pessoa excepcional. Morreu um dos melhores de nós.
Como é que tanta gente diz que não aprecia Xutos e depois todos conhecem músicas deles e até as cantarolam?
Eu aprecio e muito. Estava na Polygram quando saiu o Circo de Feras, que foi o primeiro disco com uma visibilidade mediática muito grande e que os lançou para a carreira que vieram a ter. Penso que começa aí a grande exposição mediática dos Xutos. Todos os temas são fantásticos e todos os conhecemos. Quem diz que não conhece está com fraca memória de certeza.
E o que seria da cena musical nacional se Tozé Brito tivesse sido advogado, como gostaria o pai?
Seria igualzinha, mas com menos umas 500 canções. Destas canções, há umas 10% que o País conhece, que o País canta. Canções que ficaram no imaginário de muitas pessoas, que ficaram mais populares, que tiveram mais êxito e que ficaram a fazer parte do cancioneiro da música de Portugal. As outras, se não tivessem sido escritas, não fazia grande diferença.
Escreveu para as Doce, para a Simone, também para a Mariza. Como é compor temas para públicos tão diferentes?
É divertido. Mas nem toda a gente tem essa competência, esse ecletismo. Há autores que dizem 'queres-me cantar, cantas o que eu escrevo. Se não cantas, paciência'. Eu nunca funcionei assim. Talvez por isso tenha escrito para gente tão diferente ao longo de todo este tempo. São centenas as pessoas para quem escrevi, incluindo grupos, música infantil, teatro, cinema, televisão, para tudo e mais alguma coisa. Para ser ecléctico a esse ponto, tem de se pensar na pessoa para quem se está a escrever. Conhecê-la. Quando escrevi para Carlos do Carmo foi muito fácil. Já o conhecia há muitos anos. Quando pessoas novas me pedem para escrever, tenho de ir ter com elas, almoçar fora, conversar algumas horas, para perceber do que gostam e do não gostam, como foi a carreira delas até aí. E há um segundo passo muito importante. Não basta conhecer a pessoa que canta, tem de se conhecer o público a quem se dirige. Não se pode escrever uma canção que nos agrade a nós, autores, e que agrade à pessoa que a vai cantar, sem pensar em agradar ao terceiro elemento que é a pessoa que a vai ouvir. Se nos alheamos desse facto, podemos escrever uma excelente canção, para uma excelente voz, mas se as pessoas que compram os discos daquele cantor não se identificarem com aquela canção, ela vai passar ao lado.
Trabalha há 50 anos num circuito que muitas vezes se diz ser de “gente bonita” e de “gente com poder” . Como vê as situações de assedio sexual que chegam dos EUA? São comuns na cena artística?
Em Portugal tudo é pequenino. Não digo que não exista, mas não conheço casos. E se nos Estados Unidos, que é um país onde a indústria de entretenimento e as indústrias culturais têm um peso brutal, estas coisas demoram 50, 30 ou 20 anos a vir cá para fora, se calhar em Portugal nunca chegam a vir. Porque se calhar este é um País pequenino, onde as pressões são muitas e por isso as pessoas não se expoem. Mas não tenho conhecimento de nada disso. No entanto, foram-me feitas propostas desonestas, de outro tipo.
De que outro tipo?
Propostas que não têm nada a ver com sexo, mas com dinheiro. Quando se tem poder e se [LER_MAIS] está em determinados lugares-chave, quando se é presidente de companhias multinacionais como eu fui, durante 20 anos, as pessoas vêm ter connosco e dizem que querem gravar um disco. “Você dá-me um orçamento de 20 mil euros, por exemplo, eu gravo um disco por 15 mil euros e os outros 5 mil são para si”. Isto aconteceu-me várias vezes durante estes 50 anos de música.
Como é que se sai de uma situação dessas?
Dizendo que não.
Portanto criou algumas inimizades durante estes 50 anos?
De certeza que sim. Há pessoas que nunca mais me falaram da mesma forma, pessoas que se afastaram, que saíram para outras editoras e com quem deixei de ter contacto. Não agrado a toda a gente, como ninguém agrada. Mas eram situações nas quais eu não me sentiria bem se estivesse a pactuar. Não precisei disso.
Lena d'Água usou recentemente as redes sociais para dizer que está sem trabalho, sem dinheiro e quase sem ninguém. Os artistas têm prazo de validade?
Em Portugal, infelizmente têm. E por isso sou capaz de compreender as pessoas que, estando desesperadas, são capazes de dizer 'ajuda- -me e eu ajudo-te de volta'. Não defendo que seja procedimento normal, habitual, acho que é altamente censurável. É uma forma de corrupção que não é aceitável. Mas compreendo o desespero dessas pessoas. A Lena d'Água é um exemplo, como o actor Carlos Areia, que veio dizer que, ao fim de uma carreira de décadas no teatro de revista e na televisão, está a viver com cerca de 300 euros por mês. As pessoas perguntam-se “então e não descontou para a Segurança Social durante todos esses anos?” Os próprios empresários da música, do teatro, e de outras áreas, são capazes de ter retido o dinheiro para pagar à Segurança Social, mas depois não a pagaram. Quando os artistas vão ver aquilo que para eles era uma certeza, não está lá nada. Porque as pessoas não entregaram esse dinheiro à Segurança Social. E se hoje a Segurança Social, as Finanças e tudo o que é a máquina do Estado está muito bem oleada e apetrechada em termos informáticos, e é mais fácil ir atrás das fugas, nos anos 60, 70 e 80 – e eu passei por eles todos – não havia nada. Não havia recibos para coisa nenhuma.
Deixar de lado uma artista como a Lena d'Água revela o quê acerca dos portugueses?
Os portugueses são capazes de incensar uma pessoa, quando ela está a ter muito sucesso. E têm depois algum prazer, que é um lado maquiavélico, um lado sádico, de ver uma pessoa cair. 'Ela que ganhou tanto dinheiro, que o tivesse poupado', é comum ouvir dizer. Mas o problema é que alguns descontaram e as reformas são pequenas. Outros nem eram obrigados a descontar. As entidades para onde trabalharam, as televisões, os casinos, essas sim.
E por que deixam de ter trabalho?
Os portugueses são de modas. Um artista que é grande, em países com culturas musicais e de entretenimento mais fortes, como Estados Unidos e Inglaterra, continua a ser adorado. Um Tony Bennett continua a ser adorado não só pela geração de 80 anos, como ele tem, mas também pelas gerações de 60, 40 e 20 anos, porque aprenderam a respeitar os grandes nomes da sua cultura, sejam eles cantores, actores de teatro ou de cinema. Podem até já não cantar ou representar há 20 anos, mas continuam a ser venerados. Em Portugal é ao contrário. “Olha coitado, está velho, já não se mexe”. Somos um povo afável, não é por acaso que os turistas gostam de Portugal. Somos um povo encantador. Mas depois temos este lado pequenino de dizer 'bem-feito'.
Há cantores de hoje que vamos continuar a ouvir daqui a 20 ou 30 anos?
Claro que há. Sobretudo os que têm as melhores canções. A música, para mim, não é uma questão de voz. Tivemos e continuamos a ter grandes vozes a cantar em Portugal. Não são programas que eu veja, mas sei que continuam a passar vozes incríveis pelos programas televisivos de talentos. Tal como havia no tempo da Emissora Nacional, onde passaram vozes como as da Simone, do António Calvário, do Artur Garcia e de toda essa geração.
Com a excepção da Simone por que razão desapareceram?
A Simone é uma grande senhora e que teve sempre uma postura muito correcta. Não quero dizer que os outros não a tenham tido também. Mas tiveram menos sorte, outros menos visibilidade. Alguns deles estão na miséria. Desta geração, há muita gente que está sem dinheiro para comer. Alguns, se não fosse a Casa do Artista, que lhes dá um quartinho, duas refeições quentes por dia e medicamentos para sobreviver, não sei como seria. Estão sem trabalho, sem reformas, sem absolutamente nada. Naquela altura não se faziam descontos. Portugal foi a esse nível quase clandestino nos anos 50, 60, 70. Começou felizmente a melhorar depois do 25 de Abril, com a máquina tributária e o Estado a funcionarem muito melhor. E recentemente, a funcionar melhor ainda.
Criaram-se produtos mais facilmente descartáveis
A internet pode acabar com a indústria da música?
Não, a internet vai ser regulada como tem de ser. Quando a rádio apareceu também se dizia que iria acabar com os espectáculos ao vivo e com os artistas. E o certo é que os espectáculos continuam a estar cheios de gente. A internet existe, os artistas estão a levar uma pancada brutal, os suportes físicos deixaram de se vender, porque o acesso à música é gratuito, desde que se queira. Mas os espectáculos continuam a estar cheios, seja no Campo Pequeno, no Campo Grande ou no Sudoeste. É espantoso, porque se percebe que as pessoas não querem pagar música. Nas lojas, os espaços dedicados à música vão sendo cada vez mais pequenos. Vão crescendo as secções de videojogos e até dos livros. Embora nas secções dos livros, isso não signifique que vendam bem. O que há é uma loucura de edição de livros e a maior parte deles vendem umas centenas de exemplares e ficam por ali. Embora o número de edições de livros também já esteja a cair, em relação ao que acontecia há dois ou três anos. Nessa altura qualquer pessoa editava um livro. E ainda hoje é um pouco assim. A internet veio criar um hábito péssimo. As pessoas pensam que tudo o que circula na internet é de graça. Pensam que por pagar o serviço e terem internet em casa não precisam de mais nada. É como pagar uma auto-estrada e pensar que todos os carros que circulam nela são seus. Uma coisa é a auto-estrada e outra coisa é a propriedade de cada carro que lá anda. E é isto que é preciso regulamentar. Já está a acontecer. A Spotify, que é o maior serviço de streamingdo mundo, paga às editoras e às sociedades de autores.
Paga o suficiente?
Não paga. Tudo vai ter de ser bem renegociado. O Youtube também paga, mas tem de pagar melhor. O Itunes sempre pagou, não há problema nenhum. Portanto, há uma tendência para os internet service providers perceberem que, para angariar publicidade, têm de ter os melhores conteúdos. E para terem esses conteúdos têm de pagar alguma coisa.
Então há futuro para a indústria discográfica?
Há, porque a indústria discográfica está a negociar esses contratos. E está nalguns casos a fazer apostas curiosas, que não revertem a favor dos artistas – o que é um grande problema – mas que os aguentam. Um desses exemplos é ser accionista dos serviços. Ou seja, não se espantem se perceberem que entre os maiores accionistas do Itunes, do Spotify ou do Youtube estão a Universal, a Warner ou a Sony, que são as três grandes multinacionais da música. São acções que lhes servem para ter fundo de maneio para poderem continuar a apostar nos artistas. Concluindo, é preciso regular, para que não seja a selva. Mas isto também tem um lado que se vai auto-regulando, como aconteceu com a rádio, que se previa que ia secar tudo e que acabou por ser o maior aliado da venda de discos. Quando não passava na rádio, não se vendiam discos.
E as passerelles e os reality shows mataram a formação de actores?
Acho é que criaram produtos mais facilmente descartáveis. Quando lancei o primeiro primeiro disco, há 50 anos, o crivo era muito mais apertado. Eram as editoras que decidiam quem gravava. E havia quatro ou cinco editoras no País. Nós passávamos pelos directores artísticos dessas editoras e ou eles gostavam de nós, ou, se não gostassem, não tínhamos hipótese nenhuma de coisa nenhuma. Era um sistema muito menos democrático do que é hoje a internet. Hoje todos podem gravar. Todos os dias se lançam milhares e milhares de carregamentos para o Youtube. E agora? Como é que eu sei o que é bom e o que é mau? Como chego lá? Podem estar lá génios… eu não sei. A vantagem do sistema anterior é que quando se passava no crivo apertado, quando a editora aceitava gravar o disco, o artista sabia que o disco ia ser bem promovido, que ia tocar na rádio, que ia passar pela televisão e tornava- -se conhecido. E as carreiras eram muito mais duradouras. Agora é fast food. Toda a gente pode ir ao restaurante comer um hambúrguer. Estão todos a comer carne, pois estão. Mas estão todos a comer mal. Está a nive -lar-se por baixo. Apesar de tudo, preferia o sistema antigo, ou um misto dos dois. O ideal seria que toda a gente pudesse divulgar o seu trabalho através da internet, mas que ao mesmo tempo pudesse existir uma indústria muito forte, que acompanhasse os novos valores e que fizesse esse crivo, apostando nos que têm mais qualidade.
Depois da vitória de Salvador Sobral, a Eurovisão ainda é um festival geopolítico?
Vai continuar a ser a mesma coisa. Salvador foi um tiro no escuro. Uns anos antes, tinha ganhado uma mulher de barbas, uma anedota que não ia longe, que depois da Eurovisão nunca mais fez nada. No caso do Salvador, juntou-se uma série de factores pela primeira vez. A canção é lindíssima. Uma melodia simples e bonita. A Luísa Sobral foi muito feliz ao escrever aquela excelente canção. E tivemos um intérprete diferente. Basta olhar para ele, a maneira como aparece. Nós ganhámos por ser diferente, com arranjo diferente, um intérprete nada exuberante, com gestos meigos, ternos. E não é nada agradável de se dizer, mas também teve algum peso o facto de ter um problema de saúde, que levou a que as pessoas lhe prestassem mais atenção. E pela primeira vez sobrepôs- se a pontuação do júri convidado para a RTP à votação do júri nacional. É que o gosto popular, do português médio, não é exactamente o gosto do europeu médio.
Como é possível que após tantos anos a falar-se de possíveis situações de plágio por parte de Tony Carreira, o caso só agora tenha ganho relevância?
Só existe plágio quando há queixa. Ou seja, o Tony Carreira podia ter copiado canções a vida toda e, se nunca tivesse existido queixa, não havia crime. O que aconteceu com Tony Carreira e Ricardo Landum, que escreve com ele, foi que, influenciados por canções que ouviram, copiando parte das canções que ouviram, outras vezes indo um pouco além disso, foram vivendo até que houvesse uma acusação formal, acusação que em regra geral tem de partir dos autores. Mas esses artistas não vão estar minimamente preocupados com o que se passa em Portugal, estando eles nos Estados Unidos, no México, na Argentina, na França ou na Itália. Além disso, Tony Carreira foi inteligente, porque quando se começou a sentir pressionado, através de algumas redes sociais, onde já se comparava a sua canção com outras, percebeu que podia ter problemas, contactou os autores, e os editores que têm os direitos sobre essas canções, e chegou a acordo. Quando, por fim, o acusaram formalmente, ele disse que já tinha chegado a acordo com aquela gente e que estava tudo legal. Ultrapassou o problema. Quando um juiz dá a sentença, dá com base na avaliação de peritos. E são os peritos que têm de dizer se as obras têm personalidade própria ou não.
O prazer de compor
Escrever “até ao último segundo”
António José Correia de Brito, conhecido por Tozé Brito, nasceu no Porto a 25 de Agosto de 1951. Do seu percurso fazem parte diversas facetas ligadas à música: cantor, letrista, compositor, produtor, editor, administrador e mentor de projectos musicais. Foi executivo das editoras Universal Music Portugal (sucessora da PolyGram) e BMG. Presentemente é director da Sociedade Portuguesa de Autores. Formou o seu primeiro grupo aos 14 anos [Começou como guitarrista dos Grupo 4]. Com os Duques subiu a um palco pela primeira vez. Com 15 anos é um dos membros fundadores do grupo Pop Five Music Incorporated como viola baixo e vocalista. Aos 18 anos vai viver para Lisboa para tocar como músico profissional no Quarteto 1111. Em 1971 actua com José Cid no conhecido Festival Yamaha – World Popular Song Festival, em Tóquio. Ao longo de 50 anos de música, escreveu para inúmeros artistas, entre as quais as Doce, Adelaide Ferreira, Simone e a fadista Mariza. No futuro, gostaria de escrever um livro auto-biográfico. Diz que irá continuar a tocar guitarra e a escrever canções “até ao último segundo”.