Os poemas de escárnio e maldizer são atribuídos ao rei D. Dinis e ao avô, o monarca Alfonso X, de Castela, e a outros trovadores e jograis que viveram há centenas de anos nos séculos XIII e XIV; a voz, de quem os vai dizer no Castelo de Leiria, é do vocalista dos Moonspell, banda de metal gótico com uma longa carreira internacional construída a partir da Brandoa.
Inédito, e provavelmente surpreendente, o espectáculo justifica, segundo Fernando Ribeiro, “bolinha vermelha ao canto” como nos ecrãs da televisão, porque inclui “vernáculo a sério” e um carácter “politicamente incorrecto”.
Acima de tudo, Da Esteyra Vermelha Cantarey é um recital “muito divertido”, antecipa o fundador dos Moonspell, que este fim-de-semana se estreia a declamar poesia. “Dizendo as coisas a brincar, conseguia-se mandar imensos recados”. O início está agendado para as 16:30 horas de sábado, 22 de Março, na Igreja da Pena. “E vai ser um bocado como estar num castelo, ou numa feira popular, na altura, em que vou ser o diseur daquelas cantigas que são maravilhosas, que falam de amor, de melancolia, de Deus. Condensada ali, está muita da história de Portugal e da relação entre pessoas dentro das cortes e cá fora”.
Atitude de rua
Fernando Ribeiro será acompanhado pelos músicos Ricardo Alves Pereira e Esin Yardimli Alves Pereira – o ensemble The Wandering Bard (TWB) – que vão tocar instrumentos da época como a vielle, o alaúde, a harpa e outros, de percussão, naquele que é o segundo episódio da temporada de 2025 do Ciclo de Música Medieval de Leiria. Moram todos em Alcobaça, mas, durante a adolescência, Esin ouvia os Moonspell em casa, na Turquia. Chegou a vê-los ao vivo, ainda no país de origem. A colaboração com Fernando Ribeiro (que, além da música, publica livros de poesia e ficção) preenche dois objectivos: “unir a tradição trovadoresca com a modernidade do século XXI” e “celebrar a liberdade de expressão”.
Uma espécie de “spoken word medieval”, em que sobressaem semelhanças com a actualidade. “Costumo sempre dizer que o desporto nacional não é o futebol, é a maledicência. Mas, ali, é uma forma de arte e de conseguir espaço social” e “regalias”, assinala o frontman dos Moonspell. “O que é que eu levo de mim? Levo o meu gutural, a minha pose, o meu porte, levo um bocadinho, também, a minha rua, porque, apesar de não haver calão de rua, há atitude de rua. Há lá um despique, uma desgarrada, e eu falo com o Ricardo, que está a tocar alaúde. E é uma coisa disputada, eu falo dele como se estivesse a discutir numa rua na Brandoa, que é de onde eu venho”.
Mulheres protagonistas
Fernando Ribeiro sublinha que “o mundo do metal sempre teve um grande fascínio pela história, pelo medievalismo, pela luta entre o bem e o mal”. E acrescenta que os Moonspell não fogem à regra. “Há imensos pontos de contacto”. Mesmo assim, o “grande desafio” proposto pelo ensemble TWB não deixa de o enviar numa viagem com descobertas inesperadas. “Fico surpreendido, como eles nos mostram uma sociedade diferente, uma sociedade onde havia mulheres protagonistas”, diz ao JORNAL DE LEIRIA. “Eram mulheres que lutavam, que faziam, que queriam ter sexo”. E conclui: “Temos uma ideia muito incompleta” da Idade Média “como uma época de escuridão, de intolerância”, porém, “houve imensos progressos”.
Ricardo Alves Pereira concorda: “No final deste concerto o público vai ter realmente uma perspectiva completamente diferente das cantigas de escárnio e maldizer e da época medieval”.
Para maiores de 18 anos, o recital de poesia musicada mostra, segundo os organizadores, que a Idade Média na Península Ibérica foi um tempo de convivência e partilha entre povos, culturas, linguagens, filosofia, ciência e arte.
“Escolhemos exemplos com que achamos que o público se vai conectar porque com este nível de liberdade de expressão falam sobre situações que se aplicam hoje na sociedade”, comenta Esin Yardimli. A colecção que vai ouvir-se no Castelo de Leiria no sábado – traduzida do galaico-português para o português moderno – evidencia a variedade daquele tipo de composição lírica, com crítica social, política, económica, religiosa, momentos de insulto e outros de cariz sexual, explícito ou subentendido.
O espectáculo abre com uma cantiga da autoria de D. Dinis – acredita-se que também terá escrito durante as estadias no castelo entre os rios Lis e Lena – e fecha com outra, atribuída a Mem Rodrigues de Briteiros ou João Fernandes de Ardeleiro, sobre um sangrador de Leirea. Um final “impactante” que, de acordo com Ricardo Alves Pereira, “põe à luz verdades muito sérias que hoje vivemos”.