Nos registos do Prémio Nobel da Literatura, que este ano não será atribuído, há um nome com ligações à região: o de Maria Madalena de Martel Patrício, escritora e poeta oriunda de uma família aristocrata com raízes em Pombal que, entre os anos 30 e 50 do século XX, foi, por 14 vezes, proposta para o mais importante galardão na área da escrita.
Mas, apesar da façanha, Maria Madalena Martel (que também assinou como Maria Magdalena) é hoje um nome praticamente desconhecido e ignorado. Na internet, por exemplo, são poucas as referências que encontramos relativas esta figura da literatura, indicada para o Nobel por membros da Academia das Ciências.
“A primeira mulher portuguesa a ser proposta para o Prémio Nobel afigura- se como o melhor exemplo de como a fama é efémera”, escreveu Cristina Margato, num artigo publicado recentemente no revista do semanário Expresso.
A jornalista conta que numa volta pelos alfarrabistas de Lisboa “ninguém conhece” Maria Madalena Martel. “Não há nota dos seus livros, nem leitores interessados neles”, pode ler-se naquele artigo, que sublinha a “pouca memória que há de uma mulher que na época terá tido quem a considerasse escritora merecedora de um Nobel”.
Sabe-se, por exemplo, que “terá escrito para os jornais sobre as aparições em Fátima” e que, à distância de mais de meio século, parece ter protagonizado “uma disputa com António Correia de Oliveira na corrida ao Nobel”, com este poeta a ser indicado por 15 vezes.
“É, de facto, um nome ignorado”, reconhece Margarida Cardoso, professora no Agrupamento de Escolas de Pombal, que se tem dedicado ao estudo da obra de Maria Madalena Martel.
Esse trabalho serviu de base a dois ensaios que acompanharam a republicação de dois livros da escritora – Os sete demónios e Quando eu era pequenina (Dezena de alegrias) – que voltam ao prelo em 2015 e 2016, por iniciativa da Confraria do Bodo.
O objectivo, explica Joaquim Pimentel, juiz daquela confraria, é “retirar do anonimato e do esquecimento” uma escritora com ligações ao concelho, que, a par da sua obra literária, contribuiu com os seus escritos para a “divulgação e perpetuação” das tradições da região.
Ligações a grandes nomes da cultura
O primeiro contacto que Margarida Cardoso teve com a obra Maria Madalena Martel foi através da leitura de Le livre du passé mort, um livro de poemas escrito em francês e publicado em 1915.
“Achei curioso uma portuguesa a escrever em francês. Mas a sua condição social explica isso. Era uma aristocrata, com uma cultura vastíssima. Tinha ligações e correspondia-se com grandes nomes da cultura da época como François Mauriac ou Selma Lagerlöf, que foram Prémio Nobel”, conta a professora.
Mas seria a leitura de Os sete demónios, cujo original se encontra guardado na Biblioteca Municipal de Pombal, que deixaria Margarida Cardoso rendida à obra de Madalena Martel.
“É constituído por sete contos de Natal. Seis deles têm como protagonistas uma figura da nossa história, à qual é associado um dos sete pecados capitais. Por exemplo, o rei D. Sebastião encarna a soberba. Partiu para o Norte de África sem ouvir ninguém, revelando uma certa arrogância, que acabaria por levar à tragédia de Alcácer Quibir”.
Foi a partir da leitura desse livro que Margarida Cardoso começou a aprofundar o estudo sobre a escritora, nascida em 1884 em Lisboa, mas com “grande ligação” a Pombal. A investigadora conta que Madalena Martel passava “longas” temporadas na Quinta de Flandres, localizada nas imediações da cidade e que é propriedade da família Martel Patrício há mais de cinco séculos.
Mais de 25 obras publicadas
Oriunda de uma família aristocrata com raízes em Pombal, Maria Madalena de Martel Patrício (1884- -1947) nasceu e morreu em Lisboa. Estreou-se na escrita com um livro de poemas em francês – Le livre du passé mort, publicado em 1915, “seguido de cerca de 25 obras de ficção, poesia e ensaio, tanto em francês como em português”, refere a nota biográfica que acompanha a reedição do livro Quando eu era pequenina … (Dezena de Alegrias), feita em 2016 pela Confraria do Bodo e que é acompanhada de um ensaio da autoria de Margarida Cardoso, professora no Agrupamento de Escolas de Pombal doutorada pela Universidade de Sorbonne. Além daquela obra, de cariz autobiográfico, escreveu, entre outros, Os sete demónios, Sombras na estrada e O espírito medieval – As forças espirituais de Portugal. “Nas suas memórias, Raul Brandão [escritor e jornalista] refere-se a ela como tendo uma 'vivíssima compleição de artista' e 'uma alegria comunicativa. O que mais destaco é a cultura que tinha e a capacidade de captar na sua escrita pormenores da vida quotidiana com muita graça. Ela dizia que amava tudo o que era belo”, diz Margarida Cardoso, que acredita que o facto de “nunca ter tido um editor” contribuiu para que caísse no esquecimento. A esse factor, a investigadora junta “motivações políticas” – era “monárquica” e “exilou-se” em Paris após a implantação da República. “O facto de ser mulher pode também ter influenciado”, acrescenta. Entre 1939 e 1947, Maria Madalena Martel foi, por 14 vezes, proposta para Prémio Nobel da Literatura, umas vezes por Bento Carqueja, fundador do jornal O Século e membro da Academia das Ciências, e outras por António Baião, também daquela academia e que foi o primeiro director do Arquivo Nacional Torro do Tombo, como refere um artigo publicado recentemente pela revista do Expresso, da autoria de Cristina Margato. “Segundo o professor Veríssimo Serrão, no final dos anos 20, houve um editor alemão que quis editar livros de escritores portugueses. O regime deu conta que era preciso divulgar a literatura portuguesa e que talvez fosse bom haver propostas para o Prémio Nobel. Se calhar, 'juntou-se a fome com a vontade de comer'”, admite Margarida Cardoso.
Isso mesmo recorda Diogo Mateus, presidente da Câmara de Pombal, no prefácio da edição publicada em 2016 de Quando eu era pequenina… (Dezena de alegrias), onde o autarca explica que a quinta foi doada à família por “força da participação de antepassados na conquista de Ceuta”, de acordo com relato que lhe fez um descendente da escritora, o neto Francisco, e pela leitura do documento Relação dos Senhores do Prazo da Flandres.
Outonos passados na Quinta de Flandres
“Pombal ficou sendo para mim o cenário do Outono clássico, com as árvores despidas de fôlhas, e os tapetes dourados e fofos atapetando o chão”, escreve Madalena Martel em Quando eu era pequenina, uma obra autobiográfica sobre a sua infância, dividida em quatro capítulos, cada um correspondente a uma estação do ano.
O Outono era, quase sempre, passado em Pombal, com a autora a evocar naquele livro “a saudade dos Outonos doirados e felizes de Pombal, de quando […] era pequenina”.
A viagem entre Lisboa e Pombal fazia-se de comboio e durava “muitas horas”. “Partia-se de [LER_MAIS] manhã cedo e chegava-se à noite. Levava tôda a gente os seus farnéis em cestos mais ou menos elegantes e adequados a êsse fim”, descreve Maria Madalena Martel naquele livro, onde recorda a chegada a Pombal, com a comitiva a ser recebida pelo caseiro Paulo, que durante a estadia divertia os mais pequenos com “as suas histórias de pactos diabólicos e intervenções demoníacas”.
No ensaio que acompanha a republicação da obra, Margarida Cardoso expressa a sua convicção de que essas histórias contadas pelo caseiro terão inspirado a escritora na antologia de contos Os sete semónios, publicada em 1926 e grande parte escrita em Pombal.
As temporadas passadas em Pombal eram ocupadas entre as brincadeiras “com as amigas Fina, Guy, Micas Borges e Eliminha Cabral, no quintal das Borges ou sob o plátano e as nespereiras de Flandres”, entretidas a jardinar, a “preparar magustos” ou a “fazer bolos de nozes para as merendas”.
Foi também com as amigas que aprendeu a confeccionar “as célebres tigeladas de Pombal, o doce tão antigo e característico que os soldados de Napoleão lá abolatados, tão apreciaram”, como relata na sua autobiografia da infância.
Nesse livro, recorda ainda o passeio que davam anualmente pela região, com visita à Marinha Grande e às suas fábricas, onde a impressionava “o movimento diabólico” dos fornos, a Leiria, com passagem pelo castelo, e à Batalha, confessando-se admiradora incondicional das “rendas de pedra” do Mosteiro.
Nesta obra, “descobrimos, além das singularidades da vida familiar de então, um registo geográfico, histórico e cultural”, refere o prefácio da reedição fac simile de Quando eu era Pequenina (Dezena de alegrias).