A dança é língua universal, criadora de entendimentos e diálogo sem palavras.
Num círculo indiferenciados, descalços, vestidos de camisa branca e calça cinza, nove jovens bailarinos vão tomando o seu lugar, imersos no lamento de um violino, adocicado por um piano, que se faz ouvir acima do burburinho do público, curioso, perante aquilo que se está a desenrolar perante os seus olhos.
De um lado, no improvisado palco que ocupa o centro do edifício da antiga tanoaria do Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens, estão vários convidados e funcionários da instituição, do outro, estabelecendo contacto apenas através dos olhares, um grupo de jovens reclusos. São eles o público mais entusiasta do espectáculo De Dentro para Fora, da Escola de Dança Clara Leão e da SAMP, que ali aconteceu nos dias 22 e 23 de Fevereiro.
Os jovens falam em surdina entre si, sorriem e sempre que um dos colegas – os mais improváveis candidatos a vestir a pele de bailarino – toma posição no palco, não conseguem suster uma ou outra piada.
Após os primeiros minutos de surpresa, quedam- -se silenciosos, com a atenção presa em cada movimento e passo coreográfico executado pelos companheiros. As paredes exteriores da antiga tanoaria da prisão e de alguns edifícios das imediações, ainda ostentam frases de Salazar, 44 anos depois de Abril, elogiando o trabalho e a necessidade de levar uma vida limpa e honesta, lavando os pecados para com a sociedade, com o suor dos rostos e trabalho árduo dos músculos cansados.
Lá dentro, porém, debaixo do velho teclado de chapas de zinco corroído, cujos buracos deixam passar a luz de uma tarde primaveril ainda a meio Inverno, os membros vicejam ao som de uma peça de música barroca.
São como peças de engrenagem que interagem dentro da máquina criada pela coreógrafa Clara Leão. Tomam o seu lugar em passos largos, não obstante, arrastados. Dispersas entre o público presente, bailarinas da Escola de Dança Clara Leão, igualmente descalças, envergam as mesmas cores dos restantes jovens. Confundem-se, são iguais. Não há quaisquer diferenças entre ambos os grupos.
“Esta é uma peça feita, gesto por gesto, daquilo que fomos sentindo desde o primeiro dia em que nos sentámos em roda, para dar início a um processo de criação. E em roda permanecemos até hoje, cada um perante si próprio e perante o outro, a perceber como do eu se passa ao tu e depois ao nós”, explica a coreógrafa.
Gestos icónicos De Dentro Para Fora
Com o público preso por cada gesto e sem ousar proferir um verbo, os bailarinos volteiam e procuram um novo lugar no círculo da vida. São como adolescentes, já não crianças, que procuram saber quem são e que atitude tomar no palco do mundo.
Há quem suba a uma cadeira e erga um punho contestatário em direcção ao firmamento, recriando o gesto icónico de Tommie Smith e John Carlos, nos Jogos Olímpicos de 1968; há quem se sente a contemplar de olhar perdido; há quem se perca em pensamentos aparentemente introvertidos.
O processo de construção identitário que se processa à frente do público é interrompido subitamente. Os bailarinos batem palmas, contagiam quem está a assistir, que, entretanto percebe que o clap! clap! clap! que está a escutar é ritmado e representa a introdução de um momento ritual de dança marcada por um encontro da mística africana e da capoeira, vinda do outro lado do Atlântico.
A alegria é contagiante e, mais uma vez, se esbatem as diferenças entre quem assiste e quem está no palco, entre quem veio de fora e que está dentro dos muros. O espectáculo é de todos. Todos são protagonistas nesta história De Dentro para Fora.
Entendendo o tu e construindo o nós
Tão subitamente quanto começaram, as palmas terminam, a dança volta a ser marcada pela contemporaneidade e o silêncio, abafado pela música clássica de pauta barroca, oboé, viola e violino, regressa.
Depois da dança, o teatro contemporâneo
O espectáculo De Dentro para Fora, da Escola de Dança Clara Leão, estreou o 3RPM – Ciclo de Residências Pavilhão Mozart – Opera na Prisão, nos dias 22, com uma apresentação para a comunidade prisional, e 23, com o bailado aberto ao público da comunidade de Leiria, mas estão já programadas mais actividades.
A próxima residência terá a colaboração do Leirena – Companhia de Teatro de Leiria. No decorrer desta semana, acontecerá o primeiro encontro entre o colectivo cénico, a SAMP e o estabelecimento prisional.
O Projecto Pavilhão Mozart da SAMP é financiado pelo Portugal Inovação Social, PARTIS – Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação Caixa Agrícola de Leiria, Câmara Municipal de Leiria, contando com vários outros parceiros.
Elas e eles ocupam agora o centro da improvisada arena da vida que é o palco da tanoaria, a respiração suspensa à espera de um momento. Dançam, rodopiam, volteiam, olham-se, cúmplices, num diálogo de gestos milimétricos e cúmplices, sem que mãos e braços quase sem se tocar.
“Em cada movimento encerram-se segredos que é preciso contar, sem que ninguém ouça, mas também se declara um amor alto e bom som”, descreve Clara Leão que explica que se [LER_MAIS] pretendeu dar evidência ao “tu que precisamos entender” e que também reflexo do “nós que constrói a pertença e nos compromete com sonhos e projectos”.
Satisfeito com o resultado, David Ramy, coordenador do Projecto SAMP – Pavilhão Mozart, diz que “embora pareça um sonho pensar numa sala de espectáculos aberta à comunidade dentro de um estabelecimento prisional – o paradigma da liberdade desenvolvido dentro do paradigma da não-liberdade – , não é menos sonho pensar em criar uma coreografia de dança criativa com bailarinos de dentro e de fora do meio prisional”.
Clara Leão sublinha a entrega e alegria com que os jovens reclusos abraçaram este desafio. “A reacção do público, que ficou muito comovido com a apresentação, também me agradou imenso.” Ramy refere que o trabalho neste projecto PARTIS, envolvendo os nove bailarinos do Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens, decorreu ao longo de alguns meses de “conflitos internos, e externos”.
“Mas também de aprendizagem de um movimento a que os corpos não estavam habituados, de quebra da resistência à ideia do corpo ‘exposto e delicado’, e do encontro com um ponto de partida comum: o círculo formado pelos nossos lugares, ali, e na vida.”
Foi ainda, adianta o coordenador do projecto, um momento de “pensar quem está, quem falta, quem precisamos trazer, o que entregamos aos outros, e o que deles recebemos.”