Na sequência da detenção de vários elementos da extrema-direita, suspeitos do crime de terrorismo, entre eles um chefe da PSP, no último mês, a Polícia Judiciária (PJ) anunciou que está a canalizar mais meios para acompanhar o fenómeno da radicalização de jovens através dos meios digitais, que “procuram identidade e um sentido de pertença”.
Na segunda-feira, dia 30, data em que se celebrou o Dia Mundial das Redes Sociais, Carla Costa, inspectora- chefe da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e Criminalidade Tecnológica, em declarações aos meios de comunicação, reconheceu um grande potencial das redes sociais digitais como fomentadoras da aproximação às “ideologias extremistas”, ao ódio e falta de valores e de ética.
No ano passado, a PJ recebeu mais de mil denúncias relacionadas com estas plataformas.
A principal causa apontada para este fenómeno não é defeito, mas feitio, uma vez que os algoritmos que as gerem privilegiam, acima de tudo, a espectacularidade, o impacto e as interacções, sejam elas, na maioria, de conflito aberto ou de anuência.
Embora a causalidade não seja correlação, o mundo digital pode estar a contribuir para amplificar fenómenos, para os quais não há uma causa única.
Ressalva feita, de facto, a sociedade actual quase nos obriga a escolher um ou outro lado da barricada, seja num debate sobre política, seja num jogo de futebol dos infantis.
As posições conciliatórias e de diálogo são consideradas fracas e negligenciáveis.
Num mundo de questionáveis certos e errados, vivemos, cada vez mais, como se fizéssemos apenas parte da linguagem binária de computador.
Estaremos obrigados a fazer aquilo que o algoritmo decide ser correcto, apenas porque é fruto do “senso-comum”, em vez do resultado de uma análise do “bom-senso”?
Os termos não são sinónimos, o primeiro decorre do pensamento e do seguidismo, o segundo, da inteligência e do sentido crítico.
Ver no olhar dos outros
As redes sociais “não digitais” não são uma novidade. São intrínsecas ao ser humano gregário.
A nossa espécie só conseguiu colonizar e habitar em todos os continentes do planeta graças a este mecanismo que nos permite criar círculos de afinidade e de relação.
“Melhor ou pior, sempre fomos amados e sempre dependemos, desde que nascemos, dos outros e das redes à nossa volta. Sem este olhar empático dos outros sobre nós, não existe Humanidade. Temos de perceber o outro, para prosperar. Mas atenção, que empatia não é sinónimo de compaixão. As comunidades humanas só existem e mantêm-se coesas, porque nos estamos sempre a ver no olhar dos outros”, explica João Lázaro.
O psicólogo clínico de Leiria ressalva, contudo, que não se pode comparar as redes sociais naturais com as novas redes sociais digitais, assentes no algoritmo, no alcance, no engajamento e, em última análise, no lucro.
“A rede social não digital assenta em valores que consideramos superiores, como a confiabilidade e a segurança – estamos bem informados quando existe segurança e confiança, pelo vínculo empático com o outro -, mas a rede social digital não tem como fim levar-nos à segurança, mas a produtos, conteúdos ou pensamentos. Retirou o substracto que nos mantia unidos em comunidade.”
Há quem alegue que, nunca na história do ser humano, tivemos acesso a tanta informação. E é verdade.
Há estudos que apontam que a internet gera uma quantidade de dados por minuto que é comparável, em volume e velocidade de criação, à totalidade de informações acumuladas pela Humanidade, desde que a escrita foi criada, há 5500 anos.
No Youtube, encontramos vídeos que, tanto nos ensinam a fazer uma bomba caseira, como uma receita de bacalhau à Zé do Pipo.
“As pessoas estão convencidas que ter muita informação é sinónimo de qualidade. Estão erradas”, afirma João Lázaro. E porquê?
Porque boa parte de nós deixou de ter espírito crítico.
“Engolimos tudo como se fosse certo. A base da confiabilidade, que dantes [offline], assentava na empatia da comunidade ficou entregue a movimentos negacionistas, extremistas. Deixámos de ter as pessoas, pois o algoritmo dá as respostas todas. E isso basta-nos”, acredita o psicólogo, notando que tal demonstra que existe um grave problema de saúde colectiva.
Dificuldade em raciocinar
Nos anos 60, do século XX, a Organização Mundial de Saúde (OMS) aferiu que a “saúde perfeita” é constituída por parte iguais de saúde física, saúde psíquica e saúde social e bem-estar.
Na actualidade, este terceiro pilar está a ser erodido cada vez mais depressa.
A OMS revela que, nos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, 20% das pessoas sentem-se em “solidão”, sobretudo os jovens entre os 13 e 29 anos.
“Nunca tivemos tanta forma de contactar e de ser contactados, mas não o fazemos. Uma conversa, um comentário irónico e mordaz, uma piada são um estímulo intelectual, que se perde a olhar para o algoritmo nos telemóveis”, avança Lázaro, que dá como exemplo a seguir a Suécia, onde os telefones vão ser proibidos em todo o ensino oficial, como forma de melhorar o desempenho académico e a interacção social.
Mas vai ainda mais longe e levanta a hipótese de o mundo online estar a corroer as fundações do mundo real.
“O recente apagão foi um alerta para o tema. Há relatos de crianças maravilhadas por fazerem coisas que nunca tinham feito ou por ver os pais a falar com estranhos na rua, a fazer churrascos e partilhá-los com os vizinhos ou pessoas nos supermercados a confiar que, quem não tinha dinheiro, iria pagar no dia seguinte. Parece-me que o algoritmo e a IA estão a fazer o apagamento do respeito pelo outro, do diálogo e da moderação.”
Um dos cenários levantados pelo psicólogo clínico é preocupante, caso se confirme e está relacionado com as capacidades cognitivas, intelectuais e emocionais. Há indícios de que as redes sociais e a IA poderão ser responsáveis pela diminuição do quociente de inteligência (QI).
“Quando não utilizamos certas partes do nosso corpo, elas definham. Ora, a empatia, em termos neurológicos, necessita de muitos recursos do córtex cerebral, pois está a ser substituída pelos estímulos e informações do algoritmo e da IA. Acontece tanto nas crianças, como nos adultos. Por vezes, tona-se impossível comunicar, pois as pessoas não sabem raciocinar e conseguir perceber argumentos mais complexos. “Pela primeira vez, na história da Humanidade o QI do ser humano está a baixar”, resume João Lázaro.
“Autodisciplina do cidadão” é o antídoto para a mentira
Questionado sobre se as redes sociais digitais cumprem um papel positivo ou negativo, na nossa sociedade, o politólogo José Adelino Maltez, afirma que estes mecanismos tanto podem ser uma coisa ou outra.
Para este pensador, acima de tudo “são uma nova forma de comunicação”.
“Um jornal em papel do século XIX também era capaz de produzir conteúdos nacionalistas, imperialistas e de direita! Hoje, os canais estão a ser alterados, através desta reestruturação”, entende e adianta que, na actualidade, elas e a necessidade de as saber operar são incontornáveis.
Podem ter nascido alicerçadas no sonho de aproveitar a internet para estreitar laços e colocar pessoas dos quatro cantos do mundo a falar entre si, unindo credos e etnias diferentes, contudo, tudo indica que o ser humano preferiu abraçar o lado negro desta força.
As redes sociais são usadas cada vez mais como ferramentas e armas políticas e económicas.
“Um líder político ou económico não pode ter sucesso sem ter um exército de especialistas nas redes e um general para as comandar”, avisa José Adelino Maltez.
O politólogo dá o exemplo de António José Seguro, que, no seu intento de ser o candidato apoiado pelo PS nas próximas eleições à Presidência da República, trabalhou muito o mundo digital.
“Conseguiu massificar os resultados e os apoiantes, através do Whatsapp. Já não é a máquina partidária a fazer a mobilização, mas esta resulta antes das acções do próprio candidato”, exemplifica.
Quem regulará as redes? “Não vejo autoridade alguma capaz de as controlar eficazmente; o Estado? A Igreja? No cenário actual, não há”, afirma.
Então como regular a disseminação de conteúdos manipulados que incitam à violência, ao racismo, à demagogia, à intolerância e normalizam o que de pior tem o ser humano no seu âmago? Optimista, o politólogo acredita que apenas a “autodisciplina do cidadão”, poderá ser a solução.
“É inevitável. Acredito que a Humanidade é capaz desse autocontrolo.”
Para José Adelino Maltez, redes como o Facebook, Instagram, Truth Social ou Tik Tok são sinónimos, “inequívocos de mais liberdade” e de maior paridade, ao permitir, teoricamente, colocar um barão dos media, com o poder que daí lhe advém, ao mesmo nível de um cidadão anónimo e solitário.
Acredita igualmente que, uma maior fragmentação nas opiniões e nos canais de comunicação é sinónimo de maior pluralidade.
O povo, defende, será capaz de vislumbrar caminhos, no meio da entropia das redes sociais e dos discursos políticos demagógicos inquinados, embora seja preciso que os cidadãos e a sociedade se adaptem à nova realidade.
“Estamos a viver os últimos tempos de comentadores políticos e de actualidade escolhidos, a dedo, por quem domina o mundo dos media, para nos entrarem pela casa adentro, como aconteceu com Marcelo Rebelo de Sousa ou Marques Mendes”, vaticina.
O politólogo crê que, até agora, as falsas notícias disseminadas pelas redes sociais, “não moveram o mundo” ou a política nacional.
“Na política portuguesa, não foram as falsas notícias que criaram problemas, mas as verdadeiras e os maus actores”, critica.
Público sabe que lhe mentem