Meu Caro Zé,
Há anos ofereceram-me um livro que resultava de uma tese em Sociologia que procurava caraterizar as sociedades para além da então chamada “cortina de ferro”, através das anedotas que aí se contavam.
Entre elas, havia uma que se passava numa sala de aulas na Roménia, em que a professora exaltava as “conquistas maravilhosas” do regime de Ceausescu (tu sabes quem é, os mais novos vão à internet!) através de indicadores estatísticos do tipo “produzimos x toneladas de aço per capita, y quilos de carne per capita, z litros de leite per capita, etc.”
No fim da aula perguntou aos meninos e meninas o que gostariam de ser quando fossem “grandes”. E lá vieram as respostas tradicionais: engenheiros, médicos, arquitetos, professores, etc.
O “menino Zéquinha” lá do sítio é que continuava calado, até que a professora insistiu para que respondesse. Eis a sua resposta: “Eu quero ser um per capita." Esta anedota veio-me à memória enquanto lia um excelente artigo da escritora Lídia Jorge no Público (14-11-2018), sob o título As camisas de Gerhard Schröder.
Destaco desse artigo, em particular, uma referência a Horta Osório que, num dado programa terá, na opinião de Lídia Jorge, “posto o dedo na ferida”.
Usando números mais ou menos simbólicos, referiu a percentagem de 50% dos muito pobres deste mundo, 45% pobres e 1% dos oceaneamente opulentos. E disse que o problema do futuro provirá dessa desigualdade.
Não discordando de que, no futuro, os números possam ser esses, discordo que seja um problema do futuro. Foi já há muito um problema do passado e é, sobretudo do presente. E a culpa é dos economistas, dos políticos, dos tecnólogos, [LER_MAIS] dos cientistas e, finalmente, de muitos de nós.
Vale a pena citar, ainda no contexto do artigo, uma frase de Lídia Jorge, que é uma realidade cada vez mais premente: “Mas a faixa dos pobres incorpora uma nova população, legiões de jovens com licenciaturas, mestrados e até PhD, que não vêm horizonte à sua frente.
São pessoas que têm sentido crítico, conhecem minimamente os caminhos da História e não vão aceitar ser vítimas…
O sentido de justiça toca-lhes, sobretudo quando conhecem (e hoje, ao contrário do passado, é mais possível conhecer) o locupletamento da faixa dos 1%!. No fundo, está aqui bem desenhada a destruição de uma classe média que vinha emergindo e passa a ser pobre. E é bom não esquecer os mecanismos que conduzem e conduzirão a esta situação.
O editorial do Economist desta semana, The next capitalism revolution, evidencia parte das causas deste caminho, salientando a concentração do poder e o aumento da riqueza de muito poucos, porque afinal a distribuição da riqueza e do rendimento (não são a mesma coisa) foi sempre o parente pobre da teoria económica, das finanças e, agora, da rápida evolução tecnológica.
O “menino Zéquinha” tinha razão em querer o seu quinhão. Estamos ainda a tempo de procurar “virar a página”? O aviso final de Lídia Jorge é claro: “Em face deste escândalo, tudo o que de extravagante possa acontecer é possível”.
Até sempre,
*Professor universitário
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990