Meu Caro Zé,
No momento em que te escrevo, não está tomada ainda qualquer decisão sobre a chamada despenalização da eutanásia sob, uma vez mais, a capa do “progresso”.
Relativamente a este último ponto, talvez valha a pena lembrar, como faz Paula Martinho da Silva (Público, 28- 05-2018) que se pergunta “por que é que as mais recentes tentativas internacionais (França, Inglaterra e Finlândia) para legislar sobre eutanásia foram rejeitadas”.
No Público (27-05-2018) o filósofo José Gil pronunciava-se a favor da eutanásia, enquanto Henrique Leitão, físico e historiador de Ciências, escrevia com rudeza: “introduzida a possibilidade de um médico matar um paciente, todas as restrições da lei não serão mais do que meras inconveniências circunstanciais”.
O espaço e o tempo desta missiva são curtos para discutir o assunto, mas deixo aqui uma semente, que é a que procura definir os termos em discussão.
No Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado define-se homicídio como “o facto de uma pessoa matar outra”. Faço notar que o que carateriza o homicídio é o facto, não a intenção.
Por isso quando o mesmo dicionário diz que a eutanásia é a “morte fácil e sem sofrimento”, a que acrescenta “morte por compaixão”, separa aquele que sofre a morte daquele que a provoca, distinguindo aqui apenas o motivo por que o faz, que, obviamente, vai para além do facto.
Não nos podemos pois chocar com a palavra matar. Ou com a designação de homicídio, justificando-se a rudeza de Henrique Leitão. Não é um julgamento sobre o homicídio, mas uma constatação de que há, literalmente, um homicídio.
E isto é um ato médico? O suicídio assistido é mais problemático, correspondendo não a um homicídio, mas a proporcionar condições para que o suicida possa realizar o ato a que se propõe. Será um ato médico? Mas concedo que o problema vai mais para além do ato médico e [LER_MAIS] implica uma discussão longa sobre a liberdade e o conceito e o sentido da vida.
Como te disse, se este não é o espaço de o poder fazer, há algo que, sem qualquer dúvida, e sem saber qual é o resultado da votação, eu posso afirmar sem receio. Essa votação é, do ponto de vista democrático, ilegítima.
E porquê? Porque o Parlamento tem os representantes do povo escolhidos através de listas partidárias e não nominativas. Nós não escolhemos os deputados. Escolhemos os partidos em que votamos.
Daí que a ilegalidade tem uma dupla origem: primeiro, os representantes não sabem o que os representados pensam sobre o assunto, porque, à exceção do PAN, o assunto não fez parte de qualquer programa dos partidos que se apresentaram às eleições; em segundo, porque, mesmo que o tivessem feito, cada deputado não pode ter liberdade de voto, porque não foi escolhido pelos seus representados para deliberar sobre um assunto sobre o qual não se pronunciou individualmente na altura do ato eleitoral.
Trata-se, portanto, de uma inaceitável agressão à democracia e à participação consciente e informada dos cidadãos que tem de ser denunciada até porque, como refere Henrique Leitão, citando um autor inglês que em 1937 se pronunciava sobre as primeiras tentativas de legislação sobre a matéria: “neste momento a eutanásia é apenas uma proposta para matar aqueles que são um incómodo para si próprios, mas brevemente será aplicada àqueles que são um incómodo para os outros”.
Até sempre,
*Professor universitário
Texto escrito de acordo com a nova ortografia