Onde mora o cinema? Nas salas dos centros comerciais? Nos cineclubes? No ecrã do telemóvel, do computador portátil, do televisor? Nas memórias do público? E o que acontece quando o cinema se torna a morada de alguém, quando a sala de cinema é quase tão familiar como a casa que esse alguém habita?
A realizadora Eva Ângelo, que nasceu e cresceu em Caldas da Rainha, oferece algumas respostas no documentário Morada, em estreia nesta quinta-feira, 16 de Fevereiro – incluindo em Leiria, no Cinema City.
O filme, produzido pela Terratreme, enamora-se por um grupo de mulheres cinéfilas, com idades entre os 70 e os 90 anos, que frequentaram salas e cineclubes como forma de fuga da repressão social e pessoal durante a ditadura.
“Há lugar para ver filmes nas diferentes plataformas. Preocupa-me que umas tenham de desaparecer em prol de outras”, diz a cineasta ao JORNAL DE LEIRIA. “Dá-me alguma inquietação”.
Eva Ângelo quis pensar o que é o cinema a partir do ponto de vista de quem vê filmes em contexto de sala. “Também sou como elas espectadora, antes e depois de ser realizadora, sou espectadora”. Através de um amigo, que dá aulas sobre cinema, descobriu as protagonistas numa universidade sénior, no Porto. Do encontro e das conversas mantidas, surgiu um filme documental sobre mulheres cinéfilas e as suas memórias dos cineclubes e de salas históricas como o Trindade e o Batalha, numa etnografia em diálogo com a observação dos lugares.
“Estas mulheres não iam à missa, iam ao cinema”, comenta Eva Ângelo. Em alguns domingos, o culto contemplava cineclube de manhã, tardes no Batalha e nova sessão depois de jantar. O tempo são os anos 40, 50 e 60, “em que a experiência de sala era muito intensa” e em que estabeleceram “rotinas com determinados cinemas”, dias e horários específicos.
Morada é um “trabalho de retrospectiva”, em que sobressai a “dimensão profundamente social” de relacionamento com espaços e pessoas vivida “a partir do cinema”, que “não era só o contacto com uma obra com ou sem relevância artística”, configurava um território de liberdade que contribuiu para formar a consciência cívica e política delas.
“A questão de género emerge no filme de forma mais subtil, mas vai-se densificando”, comenta a realizadora. “Ver cinema é sempre hipótese de viajar”.
É a “história da emancipação da mulher a cruzar-se com a experiência de espectadora de cinema”, por exemplo, por fumar nos cineclubes, que “não eram sexistas” e “onde se arriscava outro tipo de programação”, não disponível no circuito comercial, que também frequentavam.
Além da dimensão social, “o que é diferenciador é também a experiência sensorial que sentimos numa sala de cinema”, salienta Eva Ângelo. “E que não sentimos com um telemóvel ou com um ecrã de televisão”.
“Onde é que está a morada do cinema?”, pergunta a cineasta. “Ainda bem que existe o streaming, ainda bem que existe a televisão”, porque há a questão do acesso, que “é também política”, num contexto em que inúmeros concelhos do país não têm projecção regular de cinema e noutros o público só tem acesso às salas dos centros comerciais.
“É importante que os filmes não se reduzam a um só modo de ver”. Eva mantém a esperança. Talvez se esteja “a assistir a uma mudança de paradigma”, através da Rede de Cineteatros Portugueses e, ao mesmo tempo, graças ao contributo dos cineclubes, “que começam a ganhar fôlego”. No Porto, entretanto, reabriram o Trindade e o Batalha. “Só espero que se consigam criar comunidades”.
Com estreia absoluta na 40ª edição do Festival Cinematográfico Internacional del Uruguay, Morada passa hoje, pela primeira vez, em Leiria, depois das 19:25 horas.