A data que a Organização das Nações Unidas destaca como Ano Internacional do Vidro é também a data em que se assinalam 30 anos após o fecho da Fábrica-Escola Irmãos Stephens (FEIS), acontecimento que, para muitos, correspondeu ao início do fim do fabrico manual do vidro na Marinha Grande.
Depois do encerramento da “Fábrica Velha”, à volta da qual toda a cidade começou a desenvolver-se, há mais de 250 anos, muitas portas de outras unidades, que também se dedicavam a esta forma de arte ancestral, viriam a fechar-se para sempre.
As indústrias de vidro de embalagem e de cristalaria automatizadas da Marinha Grande prosperam hoje, mas soprar e manusear o vidro de forma artesanal é um ofício que já poucos dominam.
O JORNAL DE LEIRIA foi ao encontro de quem, desde 1992, veste o luto pela FEIS, bem como dos poucos que, num mercado global e de feroz concorrência, ainda mantêm acesa a chama do vidro manual.[LER_MAIS]
Entravam na fábrica meninos de colo
Tinha 12 anos quando entrou na FEIS pela primeira vez. E completava 50 quando teve de deixar a fábrica onde cresceu e se fez homem. O percurso de João Vicente foi idêntico ao de muitos meninos e meninas da Marinha Grande, que ali chegavam para aprender um ofício e ajudar os pais. “Os mais antigos entravam aos 6 anos. Vinham trazidos ao colo”, salienta o antigo colaborador.
Mesmo assim, na sua geração, ainda se começava a trabalhar muito cedo. Porque as famílias sabiam que Acácio Calazans Duarte, à época administrador da fábrica, incentivava os funcionários jovens a estudar. “Foi o melhor homem que encontrei. Fazia de tudo para irmos além da quarta classe. Dava livros e tudo”, conta João, que, depois da primeira experiência nos fornos, viria a construir toda a sua carreira na FEIS como lapidário. A minúcia e o trabalho criativo faziam parte das suas funções, numa “fábrica que, num todo, deixa saudades”.
“A minha namorada, também a encontrei aqui”, lembra João, agora viúvo. “Ela era chefe de um armazém onde se embalava vidro”, recorda, saudoso.
Casamento numa pausa do serviço
Júlio Pereira e a esposa, Isabel Constâncio, também trabalharam na “Fábrica Velha”. Júlio chegou primeiro à FEIS, aos 13 anos. “Comecei logo como vidreiro. Primeiro a fechar o molde e a levar acima. Já poucos sabem o que é. É acarretar a obra para a arca”, apronta- se a explicar. Com o tempo e a prática foi desenvolvendo competências até chegar ao fabrico das peças.
Também ele realça o empenho de Calazans Duarte na formação “dos seus meninos”, quer dentro na fábrica quer fora dela. “Ainda tirei o quarto ano de Indústria Vidreira na Escola Industrial e Comercial”, salienta o antigo funcionário, lembrando que até bilhetes de cinema eram distribuídos pelos colaboradores, como forma de promover a cultura e o lazer.
Alguns anos depois de entrar na fábrica, Júlio pediu que empregassem a sua namorada, Isabel, que teria uns “15 ou 16 anos”. Já moravam juntos, quando certo dia pediram senhas aos encarregados para se ausentarem do serviço. “Fomos casar. Pedimos a dois engraxadores para serem testemunhas e voltamos para a fábrica. Mas mandaram-nos para casa para gozar oito dias de férias”, recorda o casal.
Orgulhosamente vidreiro
Luís e Cristina Póvoa são outro dos muitos casais que a fábrica uniu. Começaram a trabalhar na FEIS aos 11 e aos 14 anos. Ele começou por ser vidreiro, a soprar na cana junto aos fornos. “Era a pior secção. Pingávamos por causa do calor”, recorda Luís, ainda assim muito orgulhoso de tudo o que ali aprendeu. “Copos, cálices, jarras, peças em murano e dublê”, exemplifica.
Por aí teria ficado, não fosse o acidente que teve, a praticar desporto, que o impediu de continuar a trabalhar de pé. Acabaria por passar para a pintura, secção onde trabalhou também Cristina, que partilha fotografias antigas de uma “grande família”, gente que cruzava a cidade para ir trabalhar na fábrica, muitas vezes a pé ou de bicicleta. Construir uma casa era a única ambição, recorda a ex-funcionária, ainda revoltada com o encerramento. “Foi a morte da Marinha. A seguir foram as outras. Esta foi o balão de ensaio.”
Lágrimas que o tempo não seca
“Fiz de tudo aqui dentro”, recorda Isabel, comentando como alguns encarregados eram “abusadores” e a colocavam em tarefas “duras”. Mesmo assim, não sustem as lágrimas ao lembrar-se da FEIS. “Um desgosto que tive foi a morte dos meus pais. Outro tem sido sempre este”, chora a antiga funcionária.
Quando o apito da fábrica se calou de vez, “senti como se um tinteiro se tivesse derramado sobre uma folha branca”, conta Júlio, que nos dois anos que se seguiram não conseguiu passar em frente daqueles portões.
João, que nos últimos anos de fábrica fazia parte da comissão de trabalhadores, apresenta os motivos que levaram ao fecho da unidade: o desenvolvimento da indústria de cristalaria e da garrafaria automática, que concorriam com o fabrico manual, e a vontade do então primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva, que “queria desmantelar todas as empresas públicas e dar força às privadas”.
“Começou a sentir-se uma certa divisão entre os trabalhadores. Ofereciam indemnização aos vidreiros mais antigos para saírem. Os que ficavam já pensavam em sair também”, lembra João.
“Embora alguns governos ainda tivessem injectado subsídios na FEIS, foram muitas as gerências incompetentes que passaram pela empresa e que raras vezes saíam de Lisboa” observa Isabel.
Indústrias de moldes e de plásticos foram algumas das saídas para estes colaboradores, que em 1992 eram demasiado jovens para a reforma. Outros continuaram nas mesmas instalações, adquiridas no ano seguinte pela família Mortensen, mas a empresa não duraria.
O berço da cidade
Historiador e especialista em património industrial, Jorge Custódio salienta que as origens da FEIS remontam a 1747. “Foi a primeira fábrica de vidros instalada na Marinha Grande e corresponde à transferência de uma fábrica de vidros de Coina para este local, onde havia pinhal, combustível em grande quantidade para abastecer os fornos, e onde não faltava areia fina para utilizar como matéria-prima.”
Depois de 1749, a fábrica perde privilégios reais e sob superintendência do gestor irlandês John Beare, acaba por falir em 1767.
É reestabelecida dois anos depois por desejo da coroa, no reinado de D. José, que tinha por ministro o Marquês de Pombal, pela mão do mercador inglês Guilherme Stephens, nota o investigador. A ele e ao seu irmão, João Diogo Stephens, se deve o desenvolvimento da unidade, entre 1769 e 1826, sob a égide de uma sociedade comercial que ambos criam.
Durante este período, há uma aposta na formação dos vidreiros, com um conceito de produtividade associado à noção de bem- -estar dos operários. O plano de assistência na reforma e o acesso à cultura, através do teatro, são disso exemplo. Nesta fase, a empresa emprega cerca de 500 trabalhadores.
Antes de morrer, em 1826, João Diogo Stephens lega a fábrica à nação portuguesa para benefício da Marinha Grande.
Entre 1827 e 1919, a unidade foi entregue pelo património do Estado a capitalistas particulares que a foram gerindo de acordo com um caderno de encargos. Assim, desde 1919 até 1992, o Estado iniciou um processo de administração directa da fábrica, com diferentes fases e modelos. Entre 1919 e 1924, há uma socialização da unidade, que foi entregue a uma comissão composta por operários, membros do município e administradores do Estado.
Em 1924, num cenário de “caos”, o Estado entrega a gestão a Acácio de Calazans Duarte, primeiro como agente técnico, depois como administrador, tendo promovido o “renascimento” da fábrica, até 1959, salienta Jorge Custódio.
Desde 1954, vinha-a transformando num centro de desenvolvimento da indústria vidreira, tendo passado a designar-se Fábrica Escola Irmãos Stephens (FEIS).
Depois de 1959, o Estado entregou a gestão e a direcção da unidade ao Instituto Nacional de Investigação Industrial, que promoveu a sua modernização tecnológica até 1977, data que foi transformada em Empresa Pública.
Historiador contextualiza a derrocada
“A perspectiva da adesão de Portugal à CEE determinou a criação de uma Empresa Pública de cristalaria (1977- 1991), que importava modernizar e optimizar, no quadro de uma economia de mercado livre. As sucessivas dificuldades de gestão e o contexto das políticas industriais do Estado democrático em adesão à CEE (1986), acrescido do constante aumento da dívida de funcionamento e da oposição governativa para suportar constantes injecções financeiras para manter a FEIS a laborar, levaram à privatização da Empresa Pública, com o objectivo de se proceder ao seu encerramento e liquidação, como, logo de imediato, à alienação dos activos económicos, associados ao complexo industrial da FEIS”, expõe Jorge Custódio.
Assim, “em 1992 a FEIS fecha as suas portas e o governo procede à separação do património histórico- -cultural da unidade industrial da ex- -FEIS, pondo à venda a última por concurso público. Esta unidade é adquirida pela empresa de Jorgen Mortensen, de efémera duração”.
“Em 1994, a câmara municipal consciencializou- se que a antiga fábrica faz parte da identidade da Marinha Grande e movimentou-se para fazer com que o património, que não era útil à fábrica, passasse para o domínio municipal. Foi feito um interessante resgate desses espaços, que foram adquirindo novas funcionalidades”, salienta Jorge Custódio, exemplificando com a biblioteca, a escola ou o museu.
“A Marinha Grande identificou a fábrica como sendo a sua matriz, o seu berço”, observa ainda.
A sociedade Mortensen comprou a FEIS em 1993 e mais tarde entrou em insolvência.
Em 2018, o município adquiriu as suas instalações à banca, por 1,2 milhões de euros.
Presentemente, a câmara tem em curso “um estudo patrimonial integrado”, levado a cabo pelo professor Jorge Custódio, “composto pela ideia e programa de ocupação funcional da antiga fábrica de vidros Guilherme Stephens, com o objectivo da valorização cultural do património do conjunto fabril, bem como um estudo histórico-arqueológico-industrial”.
“A investigação abrange levantamentos de campo do território fabril e sua identificação histórica, recolha de contributos seleccionados junto da comunidade marinhense, recolha de memórias orais de alguns vidreiros da fábrica, entre outros procedimentos”, especifica a autarquia.
No âmbito da realização deste estudo, adianta, “está também prevista a definição e criação da ideia-base de valorização pública da fábrica e a elaboração de uma proposta de ocupação funcional integrada dos diferentes edifícios do complexo fabril, que será conhecida aquando da conclusão deste trabalho”.
Os resistentes: finitude no horizonte
Hermenegildo Santos e Paulo Simão são sócios-gerentes da Vidrexport, a última fábrica da Marinha Grande onde uma pequena parte da produção ainda é assegurada de forma manual. Fabricam vidro sobretudo para embalagem, mas também para iluminação.
Filhos de antigos trabalhadores da FEIS, Hermenegildo e Paulo herdaram a paixão pelo vidro, mas reconhecem que a produção manual já não terá longa vida nesta cidade. Nem mesmo na sua empresa.
Por um lado, porque os vidreiros estão a envelhecer e não surgiu uma nova geração de artesãos que os subsitua num ofício que exige muito know how. Por outro, é um tipo de fabrico menos rentável do que a produção automática, o que se reveste de particular importância num momento em que este sector sofre especialmente com o aumento do custo da energia.
Pouco optimista quanto ao futuro do fabrico de vidro manual na Marinha Grande está também Alfredo Poeiras, que, depois de longos anos de experiência em várias fábricas do ramo, se aposentou em 2012 e decidiu criar com o genro o estúdio Poeiras Glass.
Neste espaço, instalado a metros da FEIS, pelas mãos do mestre vidreiro nascem as mais diversas peças decorativas. Assegura que miúdos e graúdos gostam de ver as peças a ser fabricadas ao vivo, mas está certo de que a arte não terá continuidade.
“Nas décadas de 80 e 90 havia cerca de dois mil vidreiros. Hoje não sei se restam 100 na região e têm idades próximas da reforma”, contabiliza Alfredo. Na Marinha Grande, conta o mestre, trabalha também Nelson Figueiredo, que desenvolve peças manualmente no seu estúdio.
E há depois outras fábricas, poucas, que mantêm a vertente manual, mas que já nem pertencem ao concelho. Atlantis, Ifavidro e Favicri são disso exemplo, mas estão localizadas em Alcobaça.