Quase quatro anos depois da tragédia se ter abatido sobre Pedrógão Grande, o Tribunal de Leiria começou esta semana a julgar 11 arguidos, para tentar apurar responsabilidades num incêndio sem precedentes, que culminou na morte de 63 pessoas, em Junho de 2017. A maioria das vítimas tombou na Estrada Nacional 236-1, onde as temperaturas atingiram os 1.200 graus e o fumo tornou o ar irrespirável.
O luto de quem perdeu amigos e familiares continua a ser difícil de ultrapassar e agora, que tudo volta a ser recordado, há muitas feridas abertas que não conseguem abafar a voz da indignação, por se assistir a uma espécie de “jogo do empurra”.
“Seria mais justo para nós que os verdadeiros responsáveis fossem responsabilizados. Falta a cúpula [no julgamento], porque é sempre o operacional a ser posto em causa e a assumir o que a hierarquia não assumiu e não quer assumir. Há um conjunto de agentes que deveria estar no banco dos réus e e não está, e isso entristece- nos”, desabafa ao JORNAL DE LEIRIA Dina Duarte, presidente da Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG).
Segundo a dirigente, independentemente de quem está acusado, o objectivo é que “seja feita justiça” e que esta seja “consequente”. “Queremos que os nossos mortos e feridos não tenham sido em vão. Se nada mudar na consciência, na forma de actuar e de quem tem responsabilidade e o poder para fazer mudanças, nada disto valeu a pena.” Ao acompanhar as notícias do desenrolar da audiência, a presidente da AVIPG constata que “tudo falhou” naquele dia.
[LER_MAIS]“Foi a prevenção, o combate, o socorro e o rescaldo.” “Falhou o trabalho de limpeza e manutenção e as comunicações”, acrescenta, lamentando que a própria paisagem do concelho pouco se tenha alterado até agora. “O território continua a dar sinais muito aquém do que é necessário. As pessoas precisam de um território mais seguro.” As falhas na prevenção e no combate, de resto, voltaram a ser destacadas no arranque do julgamento.
Os arguidos funcionários da Ascendi, concessionária da EN 236-1, salientaram que a política da empresa determinava que a limpeza florestal das faixas de rodagem na sub-concessão Pinhal Interior fosse de cinco metros e não dez, como ainda hoje estipula a legislação.
Um dos administradores da Ascendi à data do incêndio de 2017, José Revés, admitiu mesmo que a empresa só fazia a gestão de combustível quando notificada pelas autarquias. “Não havia planos municipais de defesa da floresta contra incêndios, pelo que não fomos notificados para a realização da gestão das faixas de combustível”, acrescentou.
E Rogério Mota, responsável pela coordenação do serviço de assistência e manutenção da sub-concessão do Pinhal Interior, revelou que a “última intervenção, antes do incêndio, foi nos dias 5, 6 e 7 de Junho [de 2017], em toda a EN 236-1”, confirmando que a gestão de combustível era feita numa faixa de cinco metros.
Confrontado pela procuradora da República com fotografias da estrada, em quilómetros onde foram encontradas vítimas mortais, imagens que apresentavam vegetação e árvores a ladear a estrada “a menos dos tais cinco metros”, o arguido salientou que quanto às árvores, o trabalho “era feito na óptica da segurança rodoviária”.
Já o director de Operação e Manutenção da Ascendi, Ugo Berardinelli, garantiu que alertou a comissão executiva da empresa sobre o decreto-lei que prevê a gestão de combustível florestal num perímetro de dez metros. “Chamei a atenção por várias vezes, mas mantiveram-se sempre os cinco metros, decisão validada pelo departamento jurídico [Ascendi]. Não tinha autonomia para decidir.”
Segundo o acusado, “o que estava estabelecido no contrato de manutenção florestal entre a Ascendi e a Vibeiras, prestadora de serviços, é que tinha de cortar cinco metros para lá da faixa de rodagem”. No entanto, se algum município solicitasse uma intervenção adicional a empresa fá-lo-ia.
A advogada do comandante dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande, Augusto Arnaut, o único operacional de combate a sentar-se no banco dos réus, também salientou, aos jornalistas, a falta de meios com que os bombeiros se depararam no dia fatídico. “Não era possível fazer melhor.
O comandante Arnaut e todos os bombeiros que estiveram naquele dia [no incêndio] fizeram milagres com os poucos meios que tinham. Vivemos num País pobre, com poucos meios, portanto, as restrições orçamentais pagam-se nesta matéria”, frisou Filomena Girão.
Augusto Arnaut quis deixar uma declaração às famílias e amigos das vítimas do incêndio de Pedrógão Grande durante o julgamento, mas a juiz-presidente considerou que o seu “estado de alma” não era para ser proferido na audiência. “O dia 17 de Junho de 2017 irá perdurar para o resto da minha vida. Infelizmente, as vítimas já não se encontram connosco, mas queria dizer que lamento muito o que o incêndio provocou. Tenho 35 anos de bombeiro, nos quais 20 de comando. Dei o meu melhor. Todos os bombeiros que estiveram comigo nessa ocorrência deram o seu melhor. Sou bombeiro por opção e o meu lema foi sempre salvar vidas e bens”, disse aos jornalistas visivelmente emocionado, à saída do Tribunal Judicial de Leiria.
Pedida nova distribuição do processo