O trabucar das rotativas deu lugar ao silêncio. A Tipografia Carlos Silva, a única ainda a laborar na cidade de Leiria, fechou portas. Ao fim de 116 anos de actividade, a gráfica não resistiu à redução das encomendas e à pressão do mercado imobiliário.
Ao que o JORNAL DE LEIRIA apurou, o edifício, que era propriedade da Fundação Bissaya Barreto e onde Eça de Queirós trabalhou como administrador do concelho, foi vendido a privados, que o pretendem recuperar habitação.
O último dia de trabalho da tipografia foi a 31 de Janeiro. Mas, nos dias que se seguiram ainda se manteve de portas abertas. Era tempo de informar os clientes, de arrumar as últimas contas e de libertar o espaço.
A cada canto, uma recordação. Como a primeira página do jornal A Batalha Nova, publicado em 1909, cartazes de festas e de eventos, como aquele que anuncia um passeio de automóveis antigos na cidade, ou o último trabalho executado, as rifas para o sorteio das festas dos Barreiros (freguesia de Amor), a realizar em Maio.
Vítor Ferreira, o funcionário mais antigo dos quatro que ainda ali trabalhavam, vai desfiando algumas memórias. Foram, quase 50 anos passados entre máquinas e caracteres de chumbo. Começou com 12 anos, assim que acabou a instrução primária. Iniciou-se na área dos acabamentos, mas passou por todos os sectores, incluindo a impressão manual.
“Dei muito ao pedal, até ganhar prática a pôr e a tirar as folhas. Parecia uma máquina de costura. Com o pedal, conseguíamos controlar a velocidade de trabalho. Fazia perto de mil impressões por hora”, recorda o antigo tipógrafo, que irá agora passar à aposentação.
Dos tempos áureos da actividade, Vítor Ferreira e Paulo Jorge, outro dos últimos funcionários da empresa, recordam os serões passados a terminar as encomendas ou os dias em que almoçavam ao lado das máquinas, porque “era preciso acabar trabalhos”.
“Às vezes, não podíamos parar as máquinas e comíamos ali mesmo”, recorda Paulo Jorge, que contava já com 36 anos de casa. “Comecei aos 16 e só fiz uma pausa quando fui cumprir o serviço militar. O patrão ficou à espera que voltasse e não pôs ninguém no meu lugar”, acrescenta.
[LER_MAIS] No seu auge, a Tipografia Carlos Silva chegou a ter 11 trabalhadores, “mais o patrão”. Entre os grandes clientes da tipografia estiveram empresas como a Cimpor, a Plásticos Edmar e mais recentemente a Roca. “Para a cimenteira, fizemos milhares de livros [guias de remessa e facturas]”, conta Vítor Ferreira.
Fundada por “um alfacinha”
“Já corri o mundo inteiro, de norte a sul, todos os lados, para imprimir os meus fados por poucochinho dinheiro. E sabem – sou verdadeiro – onde tive a alegria de encontrar tipografia, com preços sem rival? Na Imprensa Comercial, próximo da Sé, em Leiria”.
O texto é de um anúncio publicitário, de 1931, que descrevia o tipo de trabalhos da Tipografia Carlos Silva (que na época ainda tinha o nome com que iniciou actividade – Imprensa Comercial à Sé): “facturas, envelopes, memorandus, papel timbrado, talões, menus, participações, alvarás, diplomas, rótulos, etiquetas, bilhetes de visitas, ilustrações, jornais, livros e prospectos”.
Nessa época, já fazia “impressões a cores, ouro e alto relevo”, como se pode ler naquele anúncio, publicado há alguns anos no blogue Dispersamente. Carlos Silva, actual proprietário, nasceu três anos depois desse anúncio.
Filho e neto de tipógrafos, ainda tentou seguir outro caminho. Foi funcionário da Força Aérea e da Caixa Geral de Depósitos, mas a morte prematura do pai acabou por lhe ditar o destino. “Tínhamos casado há 21 dias. Ele era o filho mais velho e a mãe pediu-lhe para dar continuidade ao negócio”, conta Maria Natália Galamba, mulher do actual proprietário.
Parco em palavras, Carlos Silva recorda que a tipografia foi fundada pelo seu avó paterno, “um alfacinha”, que se iniciou no ofício em Lisboa. “Veio depois trabalhar para uma gráfica que existia no Bairro dos Anjos, em Leiria. Mais tarde, em 1903, abriu esta”, conta, explicando o encerramento da tipografia com a “falta de continuadores” para o negócio.
“Não tenho condições para continuar nem quem me queira substituir”, admite, reconhecendo que foi “difícil” manter a tipografia em funcionamento nos últimos anos. “No tempo em que havia muito trabalho, tivemos cinco tipografias na cidade [Mendes Barata, Leiriense, Lis, Gráfica de Leiria e Carlos Silva] e chegava para todos. Hoje, mal dava para uma”, constata Carlos Silva, que, aos 83 anos, fechou a última tipografia de Leiria, aquela que o seu avó fundou, há 116 anos.
“Tudo acaba um dia”, diz, com um encolher de ombros Vítor Ferreira, que passou 49 dos seus 62 anos de vida entre as máquinas e os caracteres de chumbo da Tipografia Carlos Silva. Para esta quarta-feira, estava prevista uma visita ao local de representantes da Câmara de Leiria, para avaliar a possibilidade de adquirir algum espólio, nomeadamente máquinas.