Integrou a comissão coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza aprovada em 2021 e, antes, foi consultora da Comissão Europeia para programas sociais e coordenou em Portugal planos nacionais de acção para a inclusão. Actualmente, Fernanda Rodrigues lidera a comissão administrativa da delegação do Porto da Cruz Vermelha Portuguesa e é presidente da comissão instaladora da Ordem dos Assistentes Sociais. Doutorada em Serviço Social e licenciada em Sociologia, dá aulas na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.
Fotografia: Ricardo Graça
Olhando para as estatísticas mais recentes, é caso para dizer que o País está melhor, mas a vida das pessoas não?
Em todos os tempos, parece haver um descompasso entre aquilo que o País caminha e os problemas que vai tendo. É verdade para Portugal, é verdade para muitos outros países. Alguns dos países que têm locais de pobreza mais aprofundados são os países centrais, isso também tem contribuído para que se olhe de outra maneira para a pobreza, que se olhe para ela como uma coisa não que acontece individualmente, mas que é estrutural, isto é, alguma coisa nesta sociedade faz com que a pobreza se produza.
E, em Portugal, é estrutural.
Também, sim. Por exemplo, a estrutura de salários, a estrutura de redistribuição de rendimentos, são relativamente precárias, ocasionam situações de pobreza, se assim não fosse nós não tínhamos necessidade de uma estratégia. A questão da pobreza não vai com programas dispersos, necessita de uma linha de condução. O que é que se muda num ano na vida das pessoas, de um grupo, de um território pobre? Nada. Temos de ter acções de longo alcance, de várias maneiras, em tempo, em recursos, em profissionais, e, fundamental, não esmorecermos do ponto de vista da vontade política.
E existe essa vontade política no sentido de considerar o combate à pobreza uma prioridade?
Primeiro, consta do programa do Governo o combate à pobreza, portanto, podemos dizer que civicamente nós podemos interpelar o Governo relativamente a isso. Segundo, o próprio PRR, que é hoje um instrumento com o qual se conta muito, enuncia a pobreza como uma área fundamental. Em momentos anteriores da nossa vida nacional, nós não tivemos estes requisitos colocados. Hoje acho que temos razões para ter maior expectativa que alguma coisa consistente seja feita, porque temos recursos, não talvez a totalidade, mas uma parte deles, e temos a declaração da vontade política.
Que recursos faltam?
Temos de trabalhar sempre numa matriz plural de recursos. É evidente que a gente tem muita vontade de pôr os recursos financeiros à frente, e é verdade, não há alteração, por exemplo, de políticas salariais, se não houver recursos financeiros, não há possibilidade de termos uma estrutura de pensões que desafogue os nossos idosos, e não só, da situação em que estão, muitas vezes, de pobreza. Não se faz isso com instituições pobres, com instituições que não se renovam, com instituições que não olham para a pobreza como ela é hoje. A pobreza de hoje não é de ontem.
Qual é a diferença?
Ela é mais alargada, do ponto de vista dos grupos que atinge. Depois, passou a incidir nalguns problemas que são problemas muito fundos. Por exemplo, os sem-abrigo. Sempre houve sem-abrigo, é verdade; como problema social, é muito recente. Hoje sabemos que é um problema estrutural e que tem muito mais que ver do que além das políticas de habitação. As adições, o envelhecimento desprotegido, o isolamento.
Além dos recursos financeiros, há outros.
Institucionais. Há hoje instituições pobres, de vários pontos de vista. Pobres porque têm falta de recursos, mas pobres, também, porque não refrescaram o seu olhar sobre os problemas sociais. Depois, também, profissionais. E não posso deixar de falar de uma outra coisa: dirigentes das associações. Não é verdade que sejam só os profissionais que precisam de reiteradamente se actualizar, serem adequados. Há uma classe de dirigentes profissionais impreparados.
Dos dirigentes e das instituições, a pobreza, que visão exige?
Em primeiro lugar, exige que se olhe para aquilo onde ela radica. Ter em permanência um plano de intervenção imediato. Para além disso, porque é que a gente não se lembra daquilo que já tem aprendido sobre quais são as causas da pobreza? Para intervir nessas causas. Mais uma vez: quanto é que vem do trabalho? Hoje nós temos uma pobreza que se formou a partir do grave problema da habitação.
Em relação aos indicadores, houve um agravamento durante a pandemia, e, depois, uma melhoria. Afinal, qual é a dimensão da pobreza em Portugal?
A mensuração da pobreza não está muito bem servida do ponto de vista da informação que temos, porque estamos sempre a olhar pelo retrovisor, estamos a olhar para uma pobreza que já passou. Neste momento, sabemos, e não temos mensurado, ainda, qual é a dimensão da pobreza.
E é maior do que diziam os números em Janeiro?
A expectativa é que seja maior porque obviamente houve um conjunto de elementos que contribuíram para isso. Desde logo, a inflação. Seria absolutamente excepcional que não fosse maior.
As políticas salariais são determinantes? Segundo o INE, 1,7 milhões de portugueses viviam em 2021 com menos de 551 euros por mês.
Somos um País que vive essencialmente do trabalho. As políticas salariais são muito importantes, são mesmo determinantes. O que é preocupante hoje nas políticas salariais é ver como elas não só desgastam a população mais envelhecida, mas estão a desgastar, e de que maneira, a população mais jovem, que chega ao mercado de trabalho e tem ofertas salariais absolutamente desadequadas para duas coisas: em primeiro lugar, para viver, que é o que importa, e, em segundo lugar, de compensação relativamente àquilo que lhe prometeram que era a expectativa da educação. Durante muito tempo se considerava que a pobreza era constituída por um terço de desempregados, um terço de trabalhadores pobres e um terço de idosos. Se não há reformas adequadas, a maior parte das reformas são, de facto, do erário público; se não há uma política salarial adequada, que tem de ser regulada e tem de ser imposta; se a questão do desemprego não cumpre a função que é a substituição do salário, temos um grande trabalho a fazer e todo ele é do âmbito das políticas públicas.
Considerando os efeitos da inflação, acredita que as metas que estão definidas na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza ainda podem ser atingidas, nomeadamente, retirar 600 mil pessoas da pobreza em 10 anos?
Não acho impossível. Se quer a minha opinião, acho pouco. Fica um bocadinho a sensação de que talvez pudéssemos ir mais longe.
Que impacto está a ter a crise da habitação?
Está a ter um impacto muito sério, dos jovens, de, inclusivamente, processos muito complicados de sobrelotação, de afastamento, começa a agravar-se o afastamento entre os locais de vida e os locais de trabalho, com tudo o que isso signica do ponto de vista da qualidade de vida. E depois a gente fala da conciliação do mundo do trabalho com o mundo familiar. Há uns três anos, foi feito um estudo que indicou 26 mil famílias em situação considerada de indignidade habitacional, o que signica que são pessoas que estavam a viver em condições que não eram consideradas consentâneas. Há muita gente convencida, e eu própria, que este número já se alterou e é maior, o que signica que as medidas previstas têm de se acelerar, têm de se diversificar, têm de contar com todos, agora, não é com todos da mesma maneira, porque há pessoas para quem o acesso ao mercado não é uma possibilidade, é um obstáculo.
Estamos a falar de um direito consagrado na Constituição.
Os direitos sociais sempre foram até hoje mais frágeis do que os direitos civis e os direitos políticos e os direitos económicos. Uma das razões é pelo facto de que não há armação de direitos sociais sem recursos. Os direitos sociais tornam o Estado devedor dos cidadãos e os cidadãos credores do próprio Estado. Sem direitos sociais temos seguramente sociedades incompletas.
Concorda que há uma percentagem da opinião pública que não vê vantagens na solidariedade?
Não sei se não vê vantagens na solidariedade, não sei se será isso. Nós somos um sistema de bem estar tardio e incompleto. E bem se podia aplicar aqui a ideia de que se as pessoas não conseguiram ver todo o esplendor do que é um sistema de bem estar que garanta, é evidente que estão muito na lógica de defender o seu terreno e obviamente criam condições de incompatibilidade com os direitos dos outros cidadãos que são incríveis. Essa hipercrítica relativamente aos apoios sociais resulta da circunstância, do meu ponto de vista, de que as pessoas não interiorizaram o que são os direitos sociais.
Ainda é preciso explicar os benefícios de um Estado social?
Sobretudo, os benefícios dos outros. Também é verdade que em tudo isto nós sofremos com a acentuação nas nossas sociedades do individualismo. A ideia de nos vermos a nós em primeiro lugar, em segundo, em terceiro, e depois talvez a gente tenha olhos para mais coisas, ofende gravemente aquilo que é a lógica da solidariedade social e ampla que está implicada num sistema de bem estar.