Que marca deixou no Agrupamento de Escolas de Colmeias, onde esteve quase 30 anos?
Talvez seja a de ter procurado construir uma escola diferente, que fosse integradora e inovadora, inclusiva e transformadora, assente numa questão que é essencial: nada em educação se faz sozinho. Todo esse processo de construção ao longo dos anos teve o envolvimento das pessoas, numa proximidade e afecto. A escola é sempre um lugar de desafios e de compromissos e procurei desafios, mobilizando e motivando o empenhamento e o desempenho das pessoas. O principal desafio na construção de qualquer escola, e desta em particular, é procurar a melhor forma de aprender: colocar o aluno no centro das aprendizagens. E, sobretudo, colocar as aprendizagens no centro da vida da escola. Procurámos que o sucesso dos alunos fosse pelo seu potencial, pela sua singularidade e pelos seus talentos, nunca orientado para resultados e muito menos por comparação com os outros. Outro grande desafio foi a ousadia. Na educaç ão é importante ser pluralista na linha de pensamento e da acção, mas é muito importante conseguirmos caminhar fora da caixa, sempre de uma forma sustentada e reflectida, procurando encontrar o que é mais essencial. Não podemos ser muito seguidistas. Claro que cumprimos com aquilo que são as orientações superiores e os quadros legislativos. Mas há sempre margens, quer da autonomia quer da dita ousadia, para fazermos prospectivamente algo diferente. A escola só faz sentido se acrescentar valor. Neste caso concreto, foi acrescentar valor na dimensão pedagógica e organizacional, de forma a que pudéssemos ter melhor desenvolvimento integral dos alunos, ajustando o sucesso às suas características, mas também garantindo a satisfação dos agentes educativos. Ao longo dos anos procurei atribuir poder aos outros, dando espaço para que pudessem ser, agir, dar asas à sua arte, empenharem-se com os alunos e nunca desistirem deles. É essencial reconhecer o seu trabalho, competência e empenho, dando- lhe espaço para crescer profissionalmente e sentirem-se parte do projecto. Também tivemos sempre uma preocupação com a equidade, procurando ser uma escola inclusiva. Nunca recusámos um aluno. A escola começou agora a perceber que tinha de sair para fora dos muros e nós já percebemos isso há muito tempo através do relacionamento com vários parceiros.
“Uma das prioridades foi colocar o aluno no centro das aprendizagens”. Já estava muito mais à frente para a sua época?
Sim, não se fazia. A nossa escola e a forma como ela foi sendo gerida, numa acção transformacional nas pessoas, em particular nos alunos, foi construída num processo de reflexão. Mas tivemos ousadia. Todos os projectos que o ministério ou outras estruturas abriam, aderíamos sempre. Desde a primeira hora sentimos que o aluno tinha de estar no centro das aprendizagens. Tivemos sempre dois pressupostos que hoje têm uma validade inquestionável, que é a importância da aprendizagem precoce entre os zero e os seis anos e, sobretudo, a consolidação da formação, quer cívica quer afectivo-emocional quer até cognitiva- relacional, dos alunos no 1.º ciclo. A infra-estrutura do bom sucesso escolar à la longue resulta muito da forma como se trabalham estes dois primeiros níveis de ensino. A forma como o currículo estava e está organizado permite muita metodologia de projecto e relacionamento de saberes. Permite trabalhar de forma apelativa, dimensionar a curiosidade dos alunos e envolvê-los, correlacionando vários saberes úteis, práticos e funcionais.
Quais as mudanças que destaca ao longo dos anos na escola em Portugal?
Mudanças houve muitas. Durante anos houve uma produção legislativa avulsa contínua e que, por vezes, não serenou tanto a acção das escolas. Também não se fez uma monitorização e uma avaliação sustentadas dessas medidas. Portanto, por vezes, nem se percebeu bem a necessidade da sua implementação ou o terminus das mesmas. Mas no meio disso houve aspectos muito importantes, como a gestão flexível dos currículos, a educação para todos, a criação da avaliação externa das escolas e os contratos de autonomia. Não podemos esquecer que há uma viragem em 2017 com o projecto de autonomia e flexibilidade curricular, no qual as escolas passaram a ter a capacidade de se organizarem à luz da realidade dos seus alunos, do seu projecto educativo, da sua singularidade e de fazer ajustamentos ao currículo, à avaliação e à distribuição de serviço na organização das turmas, tendente a pôr o foco nos alunos. Isto, com o objectivo de poder melhorar a qualidade das aprendizagens ou o modo de aprender. Em 2018 verificou-se a mudança de paradigma com a autonomia e flexibilidade curricular e com um quadro legislativo com muita coerência e com uma visão muito integrada: sucesso, cidadania e inclusão, o que permitiu que as escolas ajustassem a sua geometria organizacional para dar melhor resposta a uma eficaz gestão curricular. A consagração disso foi possível através do perfil do aluno à saída da escola obrigatória, que permitiu finalmente às escolas trabalharem com esse foco de competências muito bem identificadas e muito actuais, associadas à definição das aprendizagens essenciais, que nunca foram objectivos mínimos de aprendizagem. Associado a isso tivemos as orientações curriculares na educação pré-escolar, a educação para a cidadania e a mudança do conceito da avaliação. Não podemos pôr o foco da aprendizagem nos alunos e ter uma lógica de avaliação punitiva classificatória. Podemos fundir as duas. Este modelo permitiu uma abertura muito intencional para a avaliação formativa. Outro aspecto muito importante foi apostar em medidas que dão robustez ao currículo, levando os alunos a sair da sala de aula e a perceber que o currículo também se pode trabalhar noutras dimensões. É óbvio que as mudanças precisam de tempo e precisam de outras condições. É evidente que estamos num curso de quatro anos. As políticas para serem sustentadas precisam de tempo e também de muita monitorização e de uma capacidade de interpelação e de reflexão pluralista, que permitam dar mais consistência a esses processos.
É necessário um pacto político na educação?
Há muito tempo que defendo a necessidade de um pacto educativo. Considero que a interpelação e a reflexão pluralista e a necessidade de termos um planeamento, uma visão estratégica e acções de intervenção prioritárias são fundamentais. É necessário e indispensável a consolidação dessas políticas, avaliação e consolidação. Caminhar para aquilo que faz sentido e ir deixando cair o que não faça. E, nesse sentido, a educação precisa claramente de mais investimento público. Isso é uma questão de vontade política. O que o Governo tem de fazer é dizer se tem ou não vontade política para fazer mais investimento. Precisamos de tornar a profissão docente mais apelativa e criar condições para o exercício da profissão. Temos uma classe envelhecida, pelo que é preciso encontrar soluções para esta crescente escassez de docentes. Temos de atrair os jovens para a profissão e reconhecer e valorizar a carreira docente. Não é possível pensar em políticas de educação alheadas de profissionais que não estejam com carreiras estáveis e valorizadas. Isto é demagogia. Temos de ter uma política de reconhecimento e valorização dos professores, para que eles se possam sentir respeitados e comprometidos com as mudanças que são necessárias. Para isso há uma questão chave: é preciso aumentar os salários dos professores. Também é necessário repensar a formação inicial, que deve apostar nas pedagogias centradas no aluno e na sua inclusão, o modelo de entrada dos novos profissionais na escola, a importância de serem acolhidos por professores seniores, de terem um período de adaptação e dar formação contínua. Temos de pensar seriamente como é que podemos potenciar o desenvolvimento profissional, pedagógico e científico dos docentes, sobretudo nas áreas didácticas e pedagógicas. Também tem de se formar pessoas para serem directores de escolas. Cada vez há menos candidatos. Podemos correr o risco de se entrar num processo de ruptura. A escola é feita por pessoas: o pessoal não docente e o pessoal técnico não superior têm um papel fundamental e que se acentuou a partir da pandemia. Psicólogos, terapeutas da fala e animadores culturais, assim como os assistentes operacionais, precisam de formação. Outra coisa que também dificulta as mudanças e a consolidação das boas políticas é uma administração pública central da educação muito centralizada, pesada e burocrática. Precisamos de uma administração educativa mais ágil, mais leve, mais proximal. Enquanto assim não for, há muitas medidas que morrem nos corredores do ministério.
A descentralização de competências para as autarquias vai ajudar a desburocratizar?
Para essa territorialização educativa ser eficaz é preciso que sejamdotados [municípios] de meios financeiros e humanos e de condições, que permitam essa sustentabilidade. Toda a descentralização não pode nunca domesticar a escola. Ao fazer-se a descentralização, a escola tem de ser um parceiro activo, que possa ainda tornar mais operativa a sua capacidade autonómica. E há outro aspecto muito importante que é o perfil dos vereadores, presidentes das câmaras e das suas equipas. Nesse aspecto, a Câmara Municipal de Leiria tem estado bem servida nos últimos anos. Temos uma vereadora da Educação, a doutora Anabela Graça, com sensibilidade para a educação, capacidade de proximidade, de pensar estrategicamente e de ouvir as pessoas, e tem uma boa equipa. Isso reflectese nas escolas de Leiria, que têm feito um óptimo trabalho.
A escola está mais adaptada ao aluno de hoje?
A escola tem-se vindo a adaptar, mas precisa de se adaptar ainda mais. Nem os alunos nem a escola são os mesmos de há umas décadas. Os alunos têm um acesso à informação e uma vivência muito vastas, que lhes dá um saber muito alargado. Quando já somos dotados de alguns saberes, mesmo que não percebamos se são úteis, há um enfrentamento com a utilidade de certos saberes que passam na escola. Temos de conseguir despertar a criatividade e a curiosidade dos alunos. A escola tem de repensar esse processo, apostando em metodologias mais activas, onde a participação dos alunos é mais autonomizada e onde há uma relação de parte a parte e uma avaliação formativa. Através desse processo vamos avaliar para as aprendizagens, dando um retorno aos alunos, mostrando onde é que eles estão e onde é que podem chegar. Todo este caminho dá uma auto-confiança e uma autonomização ao aluno. A escola tem de se preparar neste mundo, onde a incerteza é cada vez mais gritante. O mundo está cada vez mais automatizado e a escola tem um papel não de enfrentamento, mas de complementaridade e de reforço do desenvolvimento dos alunos e dos homens de amanhã e, por extensão, da sociedade, se trabalhar as competências que as máquinas não têm: a capacidade de comunicação, a emoção, a pesquisa, o trabalho em grupo.
Discorda das retenções dos alunos?
A avaliação tem uma conotação ideológica muito forte e, portanto, temos de pensar para que é que serve a avaliação e qual é a concepção de escola que queremos. Se for avaliar para classificar, nesse sentido, todo o processo de avaliação é orientado para os resultados e nesta configuração ela tem medidas segregadoras, que são punitivas. Por um lado, se os alunos não atingirem resultados geram-se as retenções e, por outro, tem um sistema de filtro oculto do acesso ao ensino superior. Quantos alunos, por via deste processo – a avaliação externa e a avaliação interna – não conseguem chegar aos cursos que gostariam? Se quisermos um modelo, e neste eu revejo-me, no qual o processo de avaliação é e deve ser orientado para as aprendizagens, para permitir ao aluno percepcionar o seu valor, não podemos trabalhar para os resultados. Temos de trabalhar para a promoção do desenvolvimento das suas competências, para o saber utilitário, para uma diversificação de recolha de informação, da prestação do seu desempenho, para poder orientar cada vez mais. Na avaliação formativa há um conceito que se tem extrapolado há muitos anos que é a ideia de que se vão simplificar processos e trabalhar para o facilitismo. Posso garantir que a avaliação formativa é tão exigente ou mais quanto a outra. Também há outra coisa muito importante: o conhecimento não se avalia por exames. Há uma riqueza e uma dimensão de utilidade de saberes muito para além daquilo que é testado no exame. Sim ou não aos exames? Depende do conceito de escola. Admito que haja uma tendência de futuro para mudar o processo de avaliação. Com serenidade, com capacidade reflexiva e com tempo, o paradigma mudará por certo. Mas para isso, é preciso também que o ensino superior abra as portas e queira ser parceiro nesta mudança.
“Aprender não está confinado a uma sala física”
Foi convidado a integrar o Conselho Nacional de Educação (CNE). Que contributos espera dar?
O senhor ministro convidou-me em função daquilo que me disse ter o perfil e a visão sobre educação, da experiência que tenho, da disponibilidade de estar ao serviço das causas públicas e da educação. Cada conselheiro tem de integrar uma, no máximo duas, das seis comissões especializadas. Fruto da minha experiência e sensibilidade, autopropus-me para integrar a comissão Escola e Sociedade. Uma das áreas de trabalho é aprofundar o conhecimento das escolas, a maneira como funcionam, como se relacionam interna e externamente, como se organizam e como desencadeiam os seus processos de liderança. Para isso, precisamos ter um conhecimento e uma compreensão profundos da escola e da sua inserção social para podermos produzir reflexões e recomendações. Isto toca-me porque há muito tempo que defendo a indispensabilidade de redes de comunicação entre escolas e profissionais, entre empresas e entre investigadores. Toda a gente que pode pensar a educação deve trabalhar em rede. Se me perguntarem por que é que a escola, por vezes não é tão reconhecida socialmente, direi que tem muito a ver com a não valorização da carreira, mas também pela falta de divulgação de estudos de caso em profundidade que mostrem o bom trabalho que em muitas escolas portuguesas se faz. Temos de fazer este estudo para poder mostrar, de uma forma inequívoca, factual e pragmática à sociedade, que o ensino público português e os professores são instituições e pessoas qualificadas. A importância deste órgão é que emite pareceres e recomendações que são solicitados pela Assembleia da República ou pelo Governo. Sei que o bom funcionamento do CNE depende, em grande medida, da capacidade de participação e de empenhamento de cada conselheiro. Estou disponível para isso. Não quero ser um enfant terrible, mas neste CNE temos de começar a pensar fora da caixa, ter uma visão prospectiva muito intensa e auto-questionar como é que ainda podemos ser mais eficazes no sentido de promover uma maior escuta das reflexões para consolidar as políticas públicas.
Que escola espera ter no futuro?
Uma escola sem paredes. Todo e qualquer espaço da escola é um espaço para aprendizagens. Hoje em dia já há algumas escolas públicas, poucas, e alguns colégios, que têm as vivências do dia-a-dia de quando éramos pequenos: um campo ou uma horta, animais… Não podemos pensar que o aprender está confinado a uma sala física. Pensar que cada vez mais o currículo vai ter uma multiplicidade de solicitações e saberes necessários, que tem de se ir ajustando flexivelmente às demandas da sociedade que hoje não podemos prever. A escola do futuro deve acompanhar a evolução, ainda que incerta, da sociedade e do mundo, ao qual tem de estar conectada. Portanto, ou convida o mundo a vir à escola ou vai visitar o mundo. Esta relação horizontal de convivência e de partilha de redes é fundamental. As empresas têm de nos dizer como é que precisarão dos alunos no futuro. Nós temos de explicar como é que estamos a prepará-los: competências e habilidades… Teremos de ter cada vez mais alunos preparados para a vida no saber ser e no saber fazer. A tendência terá de ser um desenvolvimento competencial dos alunos, com uma grande capacidade de autonomização para enfrentamento daquilo que, às vezes, nem é previsível, mas, com capacidade crítica e com adaptabilidade, com curiosidade, ajustando- se às situações. Temos de fazer dos alunos da escola do futuro melhores pensadores, melhores críticos, melhores homens e mulheres e esperar que, na conjugação entre a escola, a sociedade e outras instituições, se perceba a importância da família, da proximidade, do afecto e da felicidade. A escola do futuro passará por ter professores felizes, que possam perceber que a sua função é claramente reconhecida, com uma grande capacidade de adaptabilidade, com melhor formação e que percebem que são motivadores e guias orientadores de aprendizagens. O futuro começa hoje e não estou a falar daqui a 20 anos. Não podemos esquecer o ponto vital fulcral: o vértice escola-família. No nosso País ainda há grandes assimetrias regionais e grandes desigualdades sociais. Para que a escola possa potencialmente cumprir o seu grande desígnio, que é ajudar a aprender cada vez melhor e a formar homens e mulheres íntegros para a vida, precisa perceber que os pais não têm tempo para ir à escola. A sociedade tem de criar formas que permitam que os pais possam ser pais e acompanhar os seus filhos na escola, que também tem de se abrir mais à participação democrática de todos os seus parceiros. Quando se fala da assimetria, a escola tem tido um papel fundamental no apoio social. Há muitos alunos que precisam das refeições, do afecto, do apoio ou dos livros e temos de fazer formação parental. Não vejo a tecnologia das máquinas a tomar conta da escola. Estaremos mal se a dimensão proximal, o sentido ético, a emoção, o amor pelo outro, o sentido de família, o sentido crítico e construtivo não fizerem parte da vida relacional das famílias, da vida racional e transformacional das escolas e da vida integradora na sociedade.
As escolas não deveriam poder fixar professores que se revejam no seu projecto educativo?
É indispensável que o sistema político agilize a vinculação de professores. O que se tem verificado é uma margem muito longa de tempo para que as pessoas fiquem vinculadas à carreira e à função. Depois temos que criar um sistema que evite a rotatividade. No dia em que se conseguir isso, consolida-se melhor o desenvolvimento dos processos educativos e claramente também se estabiliza melhor a dimensão emocional, de vínculo e de autoridade na relação professoraluno, que é muito importante. O professor é insubstituível, pois acrescenta um valor. Precisamos de ter mais estabilidade nas escolas e menor rotatividade. Não é o modelo nem o processo de recrutamento que cria mais professores. O problema é que não há condições para se querer ser professor. Enquanto não se valorizar a carreira, enquanto, por exemplo, não forem criados incentivos aos professores para as suas deslocações e estadias, é difícil que isso aconteça. Quando a colocação é feita por algoritmos, nem sempre os professores que são colocados nas escolas têm o perfil que se ajuste ao projecto educativo. Defendo a possibilidade de se encontrar transitoriamente critérios adicionais. Não vou muito contra, não havendo ainda outra solução, que se possa colocar por graduação, mas que se possa colocar, por exemplo, numa listagem quatro, cinco, seis ou oito docentes e depois fazer aquilo que as escolas têm feito no ensino profissional, na contratação directa, que é utilizarem critérios e seleccionar, por via de uma entrevista, aquele que se coaduna melhor. Diz-se que isto pode levar à tendência para o amiguismo, mas a escola está inserida num sistema de administração pública que tem transparência nos seus actos administrativos e a indispensabilidade de segregação de funções quando as pessoas constituem júris. Não é por aí que vai haver subversão de princípios éticos na selecção dos professores.