Daniela Alves e Tiago Bernardino tinham trocado Lisboa por Pedrógão Grande há cerca de um ano e meio quando foram surpreendidos por um cenário “dantesco”, algo que até então só tinham visto na televisão.
Assistiram ao fogo descer Escalos Fundeiros e chegar à Aldeia das Freiras, localidade em Vila Facaia, onde residem. Sem água na torneira, salvaram a casa com baldes de água que retiraram da sua pequena piscina.
No meio do “holocausto”, como recorda, Tiago ajudou ainda a pôr a salvo duas vizinhas, uma das quais se encontrava numa cadeira de rodas e viria a perder a sua casa.
Viveram momentos de aflição e a pele de galinha continua a surgir sempre que recordam o dia 17 de Junho de 2017, mas o fogo não foi forte o suficiente para os assustar e afastá-los de Pedrógão Grande.
Não perderam a esperança de seguir com os seus projectos e são hoje um exemplo de resiliência. Querem recuperar um território que adoptaram como seu e ajudar a mudar mentalidades para evitar que novas tragédias voltem a acontecer.
A permacultura e a biodiversidade são a base do projecto que começaram a construir aos poucos. Depois do incêndio compraram um terreno, com uma pequena casa em ruínas, que pretendem recuperar para ecoturismo.
Além de apostar em trabalhar com tudo o que a terra lhes dá, sem qualquer uso de químicos, o casal pretende ainda vir a proporcionar experiências imersivas, sobretudo a quem vive na cidade.
No seu dia-a-dia, através do exemplo, procuram mudar mentalidades para que o respeito para com a natureza seja cada vez maior, não esquecendo a rentabilidade que a terra pode dar e “não é apenas o eucalipto”.
“O que se passou em Pedrógão Grande é o reflexo do País e ainda reforçou mais a nossa intenção de fazer algo pela terra. Temos coragem e somos resilientes. Quando chegava aqui adorava o cheiro do eucalipto, hoje já não penso assim”, adianta Daniela, que tirou o curso de técnica florestal, após o incêndio, e passou a olhar para a floresta de maneira diferente.
“Ainda no outro dia passei em Góis e ao ver eucalipto por todo o lado só pensava que um dia aquilo poderá pegar fogo.” O trauma ficou, como assume Tiago Bernardino, mas a vontade de fazer algo também.
“Sentimos que estamos hoje mais preparados. Fomos optimistas e vimos uma oportunidade de negócio. Acreditamos que podemos ajudar a mudar mentalidades, embora saibamos que será algo que só terá resultados daqui a muitos anos”, afirma Daniela, que aposta nas crianças, porque “são os herdeiros dos terrenos”.
Segundo diz, são elas que “vão encorajar os avós a mudar e mostrar que a biodiversidade pode ser rentável”, abandonando a monocultura, até porque “se há uma praga corre-se o risco de perder tudo de uma vez”.
Quando erguerem a estrutura de ecoturismo, serão organizadas oficinas “que podem inspirar as pessoas e chamar a atenção para cuidar do País e eliminar ao máximo os produtos químicos, evitando a contaminação dos solos, que vão matar a flora”.
´“Curiosamente, vemos que são os estrangeiros que dão valor ao que temos. Sabemos que o êxodo urbano vai acontecer e poderemos mostrar como pode ser possível. É importante que as pessoas vejam o interior numa perspectiva mais ecológica”, destaca o casal.
A resiliência de Daniela não a deixa parar. Além do curso de técnica florestal, ganhou a bolsa Sara Peralta Antunes, uma das vítimas do incêndio, cujo irmão lança anualmente uma formação gratuita para o estudo do ioga e da meditação.
“Já tirei ioga para crianças e bebés”, formação que aplica em aulas em Figueiró dos Vinhos. Estas sessões chegarão em breve a Pedrógão Grande. A falta de emprego em Pedrógão Grande é um dos problemas deste território.
Depois de trabalhar em vários sectores naquele concelho Tiago está agora desempregado. Daniela está a estagiar na Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande. “O fogo despertou-nos para muita coisa e tivemos contactos com muita gente. Um dos quais foi a Reflorestar Portugal, que tem feito alguns projectos connosco”.
Com o objecti-vo de ter um papel activo numa reflorestação, que não promova monoculturas, foi criada também a Associação Raiz Permanente, um grupo de pessoas, a maioria estrangeiros, que praticam permacultura e que procuram contribuir para uma reflorestação mais organizada e em mosaico.
Ver o fogo ao longe
O dia 17 de Junho de 2017 dificilmente será apagado da memória de quem estava em Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Casta-nheira de Pera. Daniela Alves, 38 anos, e Tiago Bernadino, 37 anos, resistiram às chamas e querem fazer a diferença em Pedrógão Grande.
Em Aldeia das Freiras, onde se vê ao longe Escalos Fundeiros, lugar onde se iniciou o fogo, Daniela e Tiago assistiram ao percorrer das chamas, a uma velocidade “incrível”. Rapidamente o “holocausto” instalou-se na zona.
“Nesse dia, tínhamos ido à praia da Vieira [Marinha Grande]. A minha irmã ouviu as notícias e ligou a avisar do fogo”, conta Daniela Alves. Foi no regresso a casa, já no IC8, que se aperceberam da existência de um fogo, longe de imaginarem a sua dimensão.
No alto da Aldeia das Freiras viram o incêndio a escalar as localidades. “Diziam que ainda estava longe”. Mas rapidamente as chamas chegaram à Aldeia das Freiras e consumiram algumas das casas existentes.
“Ligámos para o 112, tentámos perceber o que se podia fazer.” Mas Daniela deparou-se com o desespero de quem estava do outro lado da linha: “O que quer que faça? Está tudo a arder. O fogo saltava pelas copas das árvores. Só pensava em fugir”, conta.
Daniela pegou nos dois filhos, de 10 e 7 anos, e na tia que estava consigo e foi para Vila Facaia para casa do sogro. Tiago ficou na sua residência a salvar o que podia. Os dois filhos estiveram quase indiferentes ao cenário dramático. Durante seis horas foi o desespero sem saber notícias do marido, porque as comunicações apagaram-se. Daniela assume que entrou em pânico.
O marido estava sozinho em casa e ela não fazia ideia do que se passava. Os dois meninos só tiveram consciência do que se passou quando regressaram à escola. Com três anos na altura, Gabriel percebeu que nunca mais ia ver a amiguinha, porque tinha “ido para o céu”.
Nessa data, Daniela trabalhava na Câmara Municipal de Pedrógão Grande e recorda o caos que se instalou. Suspeitas à parte de situações que estão na justiça, a jovem recorda a procura quase desesperada das pessoas à espera de respostas para as suas necessidades.
Gente que perdeu tudo, inclusive família, e não sabia a que portas bater. A autarquia acabou por ser o seu primeiro porto de abrigo.
“Nunca tinha visto nada assim”
“Cenário dantesco”, casas e carros a arder, pessoas no meio da rua desorientadas e chamas por todo o lado. Paulo Cunha foi o primeiro repórter fotográfico a chegar ao incêndio de Pedrógão Grande.
Mais tarde percebeu que se encontrava no cruzamento que ia dar à EN236-I, onde morreram mais de 60 pessoas.
“Uma senhora que vinha a pé tinha abandonado o carro. Aquelas pessoas conseguiram fugir da chamada estrada da morte. Já vi muitos incêndios, mas este tinha uma tipologia completamente diferente. As temperaturas eram altas e o vento muito forte. A dimensão era idêntica aos fogos que vemos na televisão na Austrália”, adianta.
Julgamento quatro anos depois
O julgamento de 11 arguidos para determinar responsabilidades nos incêndios de Pedrógão Grande, em Junho de 2017, nos quais o Ministério Público contabilizou 63 mortos, arrancou no dia 24 de Maio, quase quatro anos depois daquele que foi o maior fogo em Portugal, cujas imagens correram os vários continentes e o facto foi alvo de um documentário da National Geographic.
`
No pacato concelho de Pedrógão Grande há quem não queira falar sobre o incêndio e outros atribuem culpas às condições atmosféricas, que dizem terem sido únicas. Temperaturas elevadas e ventos cicló-nicos não deixaram de surpreender uma população habituada a alguns incêndios de Verão.
Desconhecendo a relação de parentesco, o JORNAL DE LEIRIA conversou dias antes com Vítor Bernardino, pai de Tiago, que admite que a falta de limpeza pode ter contribuído para um fogo de maiores dimensões. Recordando que parte do seu telhado ardeu, Vítor Bernardino lamenta que se tenha ignorado a importância da limpeza. “
Tem de haver um julgamento, mais que não seja, para que não se cometam os mesmos erros, apontando como principal culpado o Governo Central. “Os bombeiros eram poucos e fizeram o que podiam. Também há responsabilidade da autarquia”, afirma.
“A prevenção poderia ter impedido o alastrar do fogo. Sobre as mortes, é difícil encontrar responsáveis. As autoridades fizeram o seu trabalho. As pessoas entraram em pânico e deslocaram-se de forma tresloucada”, constata António Jesus, outro morador da Graça.
Carlos David, à data presidente da Assodação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande, acrescenta que “mesmo que houvesse limpeza o vento era muito”.
Por exemplo, “no IC8, que é mais largo do que a EN236-I, o fogo saltou de um lado para o outro”. Para Carlos David, a responsabilidade é da “natureza”, que provocou um incêndio “anómalo”, com “ventos ciclónicos” e o fenómeno do downburst.