O Leirena Teatro – Companhia de Teatro de Leiria, criado há cerca de dez anos, conta com um reconhecido trabalho com jovens, idosos e crianças especiais. Fez parte dos objectivos desde a fundação do grupo?
Além de uma gestão artística, para sobreviver uma companhia de teatro tem de ter um fluxo financeiro. Começámos, por isso, com turmas de teatro para crianças e jovens, além dos nossos espectáculos, que estão ligados à identidade local, para que as pessoas se interessem e identifiquem com o que estão a ver. Arrancámos com o Tudo Baila em Seu Redor, criado a partir do Cancioneiro de Mar e Serra com o contributo de muitas pessoas que entrevistámos e a quem convidávamos a assistir. Fizemos uma digressão regional pelas freguesias, e havia sítios onde tínhamos apenas cinco ou dez pessoas a assistir, mas não desistimos e começou a aparecer mais público. Percebemos que tínhamos de crescer e quisemos desenvolver um projecto de teatro e comunidade. Foi assim que nasceu o festival Novos Ventos, que é um projecto comunitário. Durante uma semana, vamos para uma freguesia e falamos com todo o associativismo local, catequeses, escolas, escuteiros para criar cinco grupos que montam cinco espectáculos, que são apresentados no domingo seguinte. Os pais, avós e familiares vão para ver os filhos, ficam para ver os outros grupos e, ao final do dia, após o jantar, regressam todos para o último espectáculo profissional, com companhias como o Chapitô, A Comuna ou o Teatro Regional da Serra de Montemuro… criamos laços e afectos e, hoje, as pessoas das freguesias já vêem o Novos Ventos como um festival que lhes pertence. O teatro tem um lado social. O teatro é para as pessoas, não é para o umbigo de alguns, não é para um nicho. Inspirados por este trabalho e pelo que temos com as trupes de jovens, iniciámos uma colaboração com a APPDA, no projecto Arte e Autismo, e com a Cercilei, Oasis, APPDA, APPC, desenvolvemos a iniciativa Arte e Terapia.
Os utentes participam nesses projectos com trupes?
Temos um grupo. São pessoas com um potencial enorme. Claro que têm as suas problemáticas e grandes virtudes. Podem não saber nada, mas estão connosco, querem ajudar com carinho e afecto. Quem está, hoje, disposto a dar a mão a alguém, sem criticar e rir do erro do outro? Quando vamos a uma escola, se um aluno se engana, a turma ri-se do erro. Mas estas pessoas não riem. São solidárias e sabem que também têm dificuldades. Há lá miúdos com uma criatividade tremenda! Não podemos chegar com uma atitude de: “vamos fazer teatro inclusivo e integrálos”… qual quê!? Eles é que nos integraram. Nós é que aprendemos com eles.
Em 2020, como foi fazer teatro?
Até agora, foi e é desafiante. Quando a pandemia iniciou, em Março, vimos tudo cancelado. Todas as apresentações, trupes e festivais. Estávamos a três de dias de ir à Madeira estrear o espectáculo A Paz, para o qual já tínhamos uma digressão marcada! De repente, parou tudo. Tínhamos seis ordenados para pagar, seguros, impostos e um grande berbicacho nas mãos. O pé-de-meia iria durar talvez quatro meses… Nestas ocasiões, há sempre uns que dizem que temos e nos “reinventar”, mas a verdade é que os artistas reinventam- se todos os dias. O “músculo da reinvenção” é algo que já exercitamos há muitos anos! Entre estreias, digressões, festivais e espectáculos, a programação era constante há quatro anos. A paragem permitiu reflectir a produção da companhia. Percebi que as casas cheias e a proximidade acabaram.
Nesse contexto, surgiu o Estado de Excepção.
Tínhamos a verba prevista para o Novos Ventos, tínhamos uma carrinha, tínhamos profissionais, equipamento… tínhamos tudo para levar a cultura às ruas, às varandas, às IPSS. Transformámos a carrinha num palco, falámos com os presidentes de Junta e com a autarquia de Leiria e apresentámos o projecto. A Câmara de Leiria foi das poucas que manteve e deu um apoio fundamental às estruturas artísticas durante o confinamento e até depois dele. Também entrámos em contacto com todas as estruturas artísticas profissionais do distrito e da Rede Cultura 2027. Explicámos que tínhamos a verba do Novos Ventos e que, como seria impossível realizá-lo, iríamos dividi- la em 50 espectáculos onde gostaríamos que participassem. Partilhámos com freelancers e com estruturas, criaram-se amizades. Até tínhamos previsto cinema nas aldeias, mas acabou por não acontecer porque nos candidatámos ao Não Brinques com o Fogo, iniciativa da DRCC e da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, para criar a performance Sob a Terra. O orçamento eram quase 80 mil [LER_MAIS]euros e eu e a produtora, a Tânia, concorremos com um consórcio artístico. Convidámos artistas e estruturas locais – a Manipulartes, o a9)))), a CCer Mais, a Casota Collective, actores que tinham ficado sem trabalho, entre outros. Vencemos. Fizemos seis apresentações, das oito programadas, pois duas foram adiadas devido a surtos de Covid-19. Sinto que é a minha melhor produção. Foi muito gratificante poder concentrar-me em exclusivo na criação. O melhor disto foi o consórcio e a colaboração que se criou.

Perante a impossibilidade de poder entrar nos estabelecimentos de ensino, o Leirena criou o Teatro do Globo e passou a levar uma peça inteira dentro de um globo às escolas, sem contacto com os alunos. Não se pode atirar a toalha.
Todos os anos montamos um espectáculo de Natal com os alunos do curso profissional de Teatro do Colégio de São Teutónio, de Coimbra. Tínhamos uma ideia, mas as escolas recusavam recebê-lo, porque as regras da DGS impediam que lá entrássemos. A ideia acabou por me surgir de repente: um espectáculo onde os actores estão dentro de uma redoma. O globo é um cenário, é um palco. Pode ser usado como parte da narrativa. O primeiro espectáculo baseia-se em Sophia de Mello Breyner e os restantes serão poesia, contos ou histórias estudados em Português, do 1.º Ciclo ao Secundário.
Era para ter ido para a dança…
Filho da Diáspora, Frédéric da Cruz Pires nasceu a 5 de Maio de 1984, no Departamento 94, em Champigny-sur-Marne, nos arredores de Paris. A mãe é natural do concelho de Leiria e o pai do da Batalha.
Em França, estudou piano e, após o regresso, continuou os estudos musicais no Santuário de Fátima, mas acabou por desistir. Prosseguiu a educação no Centro de Estudos de Fátima, onde frequentou uma turma de Expressão Dramática.
“Tive a oportunidade de ter aí dança e iniciar a vida no teatro. Estava para seguir Dança profissionalmente, até que algo me puxou para o lado teatral e entrei em Coimbra, no Curso de Teatro e Educação”, recorda.
Estagiou no Teatrão, onde conheceu João Mota, director do teatro A Comuna, que o convidou a entrar na peça Hamlet, ao lado de Natália Luísa, Diogo Infante, entre outros.
Seguiram-se mais convites, entre eles para o Camareiro, com Rui de Carvalho. Foi fazendo amizades com outros actores e responsáveis de companhias nacionais.
Foi professor de teatro em várias escolas e depois fez mestrado na Escola Superior de Teatro e Cinema, em Teatro do Movimento. O Leirena apareceu há cerca de dez anos, quando regressou a Leiria e deu aulas de teatro no castelo.
“Tive 25 crianças a participar. Havia mercado cultural e decidi escrever um projecto chamado Leirena Teatro e convidar alguns amigos a participar.”
Se Leiria for Capital Europeia da Cultura, acredita que consórcios como o do Sob a Terra serão benéficos?
Não sabemos como será. Percebo que tenha de haver uma hierarquia e confio nas pessoas. Neste momento, não me preocupa se vamos ou não vencer a candidatura. A minha prioridade é se o que tenho planeado para amanhã pode acontecer. Se houver um surto ou se alguém tiver contacto com o coronavírus, não há espectáculo. Estamos a viver o dia-a-dia. A questão da capital da cultura fez com que estivéssemos mais atentos às estruturas que existem neste território e com as quais se pode trabalhar e cooperar. É importante que, nisto da capital, quer se seja uma estrutura profissional ou não, todos tenhamos as mesmas possibilidades de programar e criar.
Provavelmente, nunca se falou tanto do valor da arte e da profissão de artista como este ano.
Foi tudo desmascarado. É um trabalho muito precário. Vivemos de recibos verdes, sem subsídio de desemprego, sem garantias… A sociedade não nos dá valor porque não fui educada para isso. E de quem é a responsabilidade? Há uma falha dos ministérios da Cultura e da Educação! Não podemos esperar que o D. Sebastião regresse ou que o Moisés desça da montanha! Pelo terceiro ano consecutivo, o Leirena não consegue o apoio da DGArtes. Estamos na linha de água… quem está acima, conseguiu o apoio. Não se entende esta forma de conceder apoio. É uma estupidez. Isto é um investimento! Qual tem sido o investimento do Ministério da Cultura para o distrito de Leiria? E para a região Centro? Como é que 70% dos apoios para criação vão para Lisboa? Como é que conseguimos 84% dos critérios de apoio e, mesmo assim, não recebemos nada? E isto não é só connosco. Acontece com outras associações, como a CCer Mais… o Orfeão… Onde está a descentralização? Não queremos “um apoio”. Queremos um investimento! Com esta pandemia, continuámos, perseverámos e mostrámos que estamos cá, que continuamos a trabalhar. Vamos promover a discussão para saber qual o valor da arte hoje. Leiria tem sido uma cidade única nesta reflexão, promovida pela candidatura a Capital Europeia da Cultura. Nunca se falou tanto dela como agora. Tenho de tirar o chapéu ao presidente da Câmara, Gonçalo Lopes.
Persegue-se uma visão de que as indústrias criativas são o futuro?
Completamente! Como é Barcelona, como é Madrid? Estive há pouco em Barcelona e, só do património cultural, são milhões que entram. E em São Petersburgo, com o teatro e dança? De certeza que lá não investem apenas 1% do orçamento na Cultura [média europeia – Portugal investe apenas 0,6%].