Quais foram, para si, os factos que marcaram o ano que agora acaba?
Desde logo, o grande fenómeno das migrações, o fechamento das barreiras e construção de muros na Europa e nos Estados Unidos. Em Portugal, temos três momentos dramáticos… em jeito de resumo, podemos dizer que ardemos no Pedrógão, fomos fuzilados em Tancos e morremos afogados em Borba. São três momentos de tragicidade gigantesca. Passo pouco tempo em Portugal e esta é a sensação que tenho, vendo de fora. Anda muita gente preocupada com as fake news [notícias falsas], mas penso que vivemos, em Portugal, um tempo de fog news, isto é, há um certo nevoeiro [fog] e não se sabe muito bem o que aconteceu realmente. Há uma tentativa de colocar cortinas e véus por cima de certas realidades! Foi a não revelação do relatório final daquilo que aconteceu em Pedrógão Grande e nos fogos de Outubro de 2017. É preciso saber o que foi que falhou… Ao certo, não sabemos e, ao certo, provavelmente, a totalidade das vítimas não foi contabilizada. O fogo destapou uma fragilidade, que é também de sentimentos até de gente com responsabilidade nas tutelas. Não sei se é verdade, mas não quero acreditar que, a seguir ao incêndio do Pedrógão, tenha sido feita uma sondagem para averiguar se a popularidade do Governo, na opinião pública, tinha sido tocada. Espero que seja fake news, porque se é assim, terei de mudar de país. A sensação que tenho, como alguém que vê de fora, é que temos dois países: um onde moram as pessoas e outro onde mora a elite político-pensante, que coincide no território, mas não com o espaço de partilha de vida.
Será só a elite? Ou na sociedade portuguesa também é possível encontrar essas duas realidades?
Também. Há fenómenos que têm crescido em Portugal e um deles é um certo optimismo bacoco, que também me levanta receios, porque cria falsas esperanças. Terminamos o ano com uma grande agitação e, no fundo, estamos a pagar várias facturas. Estamos a pagar a factura de uma solução governativa que chega a prometer este e o outro mundos, quando, de facto, os não poderia dar e agora estamos a pagar isso. Por outro lado, estamos a assistir a uma tribalização da política. Ou seja, o chefe pode ser um sacana, mas é um chefe e os seguidores têm de lá ir prestar vassalagem. Neste final de ano, neste fim de feira, há um Governo apoiado por uma maioria, que, no Parlamento, se compromete mas que, na rua, faz guerra. Há partidos à Esquerda, que apoiam o Governo e que estão a contar o seu espaço de sobrevivência, nas próximas eleições. O Partido Comunista, um dos mais conservadores que existem, diz "estamos aqui", "mandamos ainda nisto" e o Bloco de Esquerda anda à procura, a ver onde pode furar.
Leia aqui a segunda parte da entrevista
“Vi milagres, vi ressurreições a acontecer”
E a Direita?
A Direita anda completamente perdida em guerras internas. O maior partido da oposição anda à procura de si mesmo. Lá dentro, é tempo das facas longas. Não aparece como alternativa e há o CDS, que está a cavalgar a onda… E temos agora esta nova aventura da Aliança, de Santana Lopes. Espero o melhor para o meu País, mas não podemos ficar presos no nacional- -optimismo ou no nacional-porreirismo. O Presidente da República tem tido um papel fantástico ao aguentar a moral das tropas, mas, a dada altura, as coisas podem escapar-lhe da mão. Já houve situações onde foi ultrapassado pelos acontecimentos. No anterior Governo, tínhamos um casamento por conveniência. Não era por amor e, ainda por cima, a noiva – Paulo Portas – era politicamente promiscua e a sogra, alemã, era do piorio. Neste Governo, o casamento é em comandita ou poligamia, onde o noivo fez acordos com duas noivas sem dizer a cada uma o que tinha acordado com a outra.
Comentador e figura do ano
Frade franciscano capuchinho, frei Fernando Ventura, nasceu em 1959, no Porto. Teólogo e biblista, foi professor de Ciências Religiosas no ISCRA em Aveiro e é intérprete na Comissão Teológica Internacional da Santa Sé. Colabora, como tradutor, com diversos organismos internacionais, como a Ordem dos Capuchinhos, a OFS e a Federação Bíblica Mundial. Pertence ao quadro de redactores da revista Bíblica, onde assina artigos de aprofundamento teológico e é autor do primeiro estudo sobre Maria no Islamismo, lançou o livro Roteiro de Leitura da Bíblia (Editorial Presença). Ministra cursos e retiros, percorre o mundo, de convite em convite ou de conferência em conferência, como tradutor. É comentador de actualidade social e religiosa na SIC Notícias e a TSF escolheu-o como "figura do ano", em 2010.
Mesmo com poucos poderes constitucionais, Marcelo tem sabido levar a água ao seu moinho?
Tem sabido gerir e gerir-se dentro de uma situação política que não é fácil. Tem sido um dos garantes da estabilidade da legislatura, e tem feito tudo para que a serenidade e racionalidade se mantenham. Tem um papel importante, mas limitado. Por exemplo, vai estar, aqui no Porto, no Hospital de São João, no Serviço de Pediatria e, com certeza, o estado das instalações voltará a ser notícia. Há crianças em pós-operatório em quartos sem janelas, há crianças que no Inverno têm de estar com casacos na cama, com frio, e isto num país onde os nossos representantes parlamentares discutem pensões vitalícias e as viagens fantasma que recebem, quando moram na porta ao lado do Parlamento. Numa situação destas, hei-de berrar o mais que puder, para que as crianças do meu País tenham, pelo menos, o mínimo de dignidade. E isto acontece no Hospital de São João e noutros locais em Portugal. É o tal nevoeiro e o tal país onde quem governa não mora. Ao mesmo tempo, cresceu, na linguagem política, futebolística, sociológica, culinária, etc., a distinção entre "nós" e "os gajos". Já não é entre mim e o outro, pois, com o outro, podemos construir um nós. Mas, com um "gajo", não construímos nada. E a cereja no bolo destas clivagens entre nós e os outros, em termos futebolísticos, foi o ataque a Alcochete. A manifestação da brutalidade e da boçalidade é motivada por um crescendo do discurso do ódio, que é feito em termos futebolísticos, políticos, religiosos… A atomização também tem sido criada pelos sindicatos. Com todo o respeito que tenho pelas plataformas sindicais, a gestão de tudo isto tem sido colocar trabalhadores contra trabalhadores. Quem é afectado pelas greves dos transportes públicos? É quem não tem viatura própria e quem precisa do transporte público para ganhar a vida. Quem é afectado pelas greves nos hospitais? Quem não tem ADSE e não pode recorrer ao privado. São sempre os mais pobres a pagar a factura. Os trabalhadores têm, de facto, o direito de exigir, mas fala-se demasiado em direitos e pouco em deveres.
O que se passa no Mundo? Os EUA escolheram Trump e, agora, o país está completamente dividido, há Duterte nas Filipinas, Bolsonaro, no Brasil, ainda é uma incógnita, o Brexit está uma embrulhada, Viktor Órban levou a Hungria para a extrema-direita e temos os coletes amarelos, em França.
Aconteceu o século XXI. Vimos do século XX, que foi uma “época de mudança” e o século XXI é uma “mudança de época” e ninguém conhece a estrada para a frente. No final do século [LER_MAIS] passado, assistimos à falência das ideologias e ficou um vazio. Quando os há, criam-se epifenómenos que tendem a alastrar, montados no medo. Hoje, o que impulsiona as reacções sociais é o medo, não é a solidariedade. A melhor forma de controlar alguém, ou um país, é conhecer-lhe os medos. Os populistas nascem montados nos medos. Estava nos Estados Unidos e assisti, quando Obama assinou a primeira versão do "Obamacare" [forma simplificada de Serviço Nacional de Saúde existente nos EUA, muito criticado pelos conservadores]. O Presidente dos EUA estava ladeado por duas crianças, cuja mãe havia morrido de cancro, porque o seguro de saúde que tinha deixou de pagar os tratamentos. Nos dias seguintes, assisti a uma campanha absolutamente terrorista feita pela Fox News a dar voz ao seguinte discurso: "não admito perder um pouco – quase nada – do meu bem-estar, para que outros possam ter um bocadinho mais".
É um discurso que faz sentido, vindo de um país que gosta de falar da sua relação com Deus e valores cristãos, como a solidariedade?
Também gostam de apregoar que são muito civilizados, mas, nos EUA, há oito milhões de crianças sem-abrigo. Quase 51% da população está a tocar o nível da miséria. A imagem que temos daquele país é Nova Iorque. O discurso de fazer a "América grande outra vez", de Trump, cavalga nos medos. Já no Brasil, o medo maior é o de sair à rua, devido à criminalidade. Bolsonaro disse que vai meter mão naquilo e vai ser pela força. Construir uma sociedade à bofetada parece ser mais fácil e rápido. De outro jeito, com respeito pelas pesas, dá muito mais trabalho. Só falta saber quais serão os danos colaterais e qual a factura. Quem souber gerir os medos e colocar o medo na estrada, consegue fazer carreira. Ando a dizer, há anos, que é preciso trazer para a rua a revolução dos não violentos antes que sejam os violentos a trazer a revolução para a rua. Noto que ninguém teve a coragem de trazer para a rua a revolução dos não violentos e, agora, os violentos já estão na rua.
Como é que Portugal ainda escapa ao populismo? Não temos medos ou não temos demagogos competentes?
Portugal escapa ao populismo porque andamos completamente distraídos. As nossas atenções têm andado viradas para a vida sexual do Ronaldo e para as declarações do ex-presidente do Sporting. Houve mudanças na Procuradoria-Geral da República, houve mudanças na estrutura do Estado e a malta anda distraída a falar da vida do Ronaldo e a seguir os episódios da novela sportinguista. Não culpo as pessoas. É de tal maneira deprimente seguir os telejornais e o dia-a-dia, que é preferível encontrar temas que nos ocupem, para não nos preocupar. Somos sanguíneos enquanto País. Somos activos, emotivos e primários. Somos geniais e solidários, em respostas em momentos de crise – veja- -se a ajuda que chegou após os incêndios -, mas a continuidade do trabalho já é mais complicada. Não sabemos resolver os problemas de base, para que não voltem a acontecer. Nos incêndios voltámos ao nevoeiro e desinformação. Há ou não casas de segunda habitação a serem feitas? Caiu um pano de silêncio. Pior do que as fake news, são as fog news e as forged news [notícias forjadas], que servem para atirar para a rua "temas fracturantes". Dá jeito ter uma população distraída, que só é chamada a intervir, durante as campanhas eleitorais e, após a noite das eleições, volta-se ao mesmo. Estamos tribalizados e o eleitorado flutuante em Portugal não é muito grande. Há grande abstenção, mas a culpa não é só dos eleitores. Têm a sensação, errada, da inutilidade da sua participação cívica. O Parlamento está transformado em salão de manicure, é um lugar de trocar benesses e de se fazer pagar por serviços que não se fazem.
O sistema eleitoral, ao obrigar-nos a votar em pessoas escolhidas pelos partidos, aumenta essa sensação de inutilidade?
O sistema protege-se a si próprio e o cidadão é usado como carne para canhão. Votamos em gente que não sabemos quem é. Nas campanhas, há arruadas, beijos, apertos de mão, bandeiras, sacos de plástico e somos levados em manada, a agitar a bandeira, quando o chefe manda. Acabam as eleições e enrolamos a bandeira debaixo do braço. A Democracia não é o melhor dos regimes, é o menos mau e nunca chegaremos à Utopia. A culpa não é da Democracia é dos maus políticos. Tal como a culpa da violência religiosa não é das religiões, é dos "gajos e gajas das religiões”. A solução utópica estaria na Anarquia… no sentido etimológico da palavra, porque “Anarquia” não é a bandalheira. O ideal da construção social tem de ser anárquico. A Anarquia, etimologicamente, defende a ausência de lei, porque ela é só para os medíocres. Quem é bom, não precisa de normas para reger o seu comportamento.
A sociedade actual parece rege-se mais pelas máximas de Hobbes do que por essa “anarquia benevolente”.
Sim, verdade. Esta anarquia é, não apenas benevolente, mas também comprometedora do eu. Já fui rotulado de ser da extrema-esquerda e da extrema-direita. Quando me perguntam qual é o meu partido, digo sempre que é "o outro". Há criaturas que não percebem a resposta. Se o nosso partido fosse sempre “o outro”, não seriam precisos partidos. Perdeuse o sentido comunitário da vida, a seguir perde-se o da fé… de tudo, e chega- se à impossibilidade de comunicar. Vivemos num tempo solteiro da fé e emoções e divorciado de compromissos. O nosso tempo matou as palavras e, quando as matamos, matamos os afectos. E, se matarmos os afectos, suicidamo-nos. Estamos a viver um tempo de palavras e afectos mortos. Nestes tempos de solidão, atiramo- nos para o primeiro que nos ofereça colo. Cremos que a esperança não está em nós, mas num Sebastião, que nos há-de salvar.
No que estaria o Papa Francisco a pensar quando tornou cardeal D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima?
D. António é uma pessoa preparadíssima. Se virmos as imagens da chegada do Papa a Monte Real, no ano passado, o único bispo que deu a Francisco um acolhimento de braços abertos e ao jeito português, foi o de Leiria-Fátima. Os restantes estavam formal e solenemente alinhados. O Papa, depois, terá dito a D. António que os colegas dele pareciam "um alinhamento de frigoríficos numa montra".
É um amigo e um aliado?
É um homem de grande valor. Alguém que está numa realidade – a de Fátima – que é transversal ao mundo inteiro e a tantas sensibilidades religiosas. Fátima é um lugar de encontro, também para religiões não cristãs. É importante ter alguém como D. António Marto, que é um homem do abraço e do sorriso, mas que também é um homem do intelecto e um óptimo pensador. Foi aluno de Ratzinger, o Papa emérito, que o orientou na tese de doutoramento. Junta a intelectualidade com o sentimento e coração. É uma pessoa que, nos momentos complicados por que Francisco tem passado dentro da Igreja, tem estado ao seu lado e não ficou calado.