A propósito dos 100 anos da fundação do PCP, que se assinalam este sábado, dia 6 de Março, o JORNAL DE LEIRIA recorda alguns dos momentos e das personalidades que escreveram a história do partido no distrito.
Das espectaculares fugas do forte de Peniche protagonizadas por Álvaro Cunhal e mais nove companheiros – entre os quais Joaquim Gomes, natural da Marinha Grande -, e de Dias Lourenço, passando pela insurreição do 18 de Janeiro de 1934, pela Revolta dos Falcões, liderada pelos trabalhadores agrícolas do Bombarral, e pelo motim de Peniche.
Nesta história cabe ainda a actividade das tipografias clandestinas que o partido teve no distrito, nomeadamente nos Marrazes (Leiria) e em Barqueiro (Alvaiázere), e a casa de apoio na Cela, em Alcobaça, onde Álvaro Cunhal viveu, na clandestinidade, cerca de dois anos.
Pela voz de alguns dos intervenientes, recordamos o primeiro comício livre que, em 1975, trouxe o carismático líder do PCP ao pavilhão da Embra, na Marinha Grande, e o assalto ao centro de trabalho dos comunistas em Alcobaça no Verão Quente de 1975, quando a sede do partido em Leiria foi também tomada pelas forças da contra-revolução.
Nesta viagem pelo tempo, evoca-se ainda o percurso de alguns dos mais destacados resistentes antifascistas no distrito, onde se incluem José Moreira e António Lopes Almeida, mortos às mãos da PIDE, sem esquecer os muitos anónimos que lutaram pela liberdade e pela defesa dos “interesses da classe operária e do povo”, alguns pagando com a reclusão ou até com a própria vida, como recordou André Martelo, membro da Direcção Regional de Leiria e do Comité Central do PCP, durante a apresentação das comemorações distritais do centenário do partido.
18 de Janeiro de 1934: Vidreiros tomam o poder
Às primeiras horas do dia 18 de Janeiro de 1934, centenas de operários vidreiros da Marinha Grande [LER_MAIS]cortaram as estradas de acesso à então vila, as linhas telefónicas e o caminho-de-ferro. De seguida, avançaram para o centro e ocuparam os correios, a Câmara Municipal e o posto da GNR.
Segundo os relatos dos acontecimentos, reproduzidos incontáveis vezes ao longo dos anos, a população aderiu à insurreição e, durante algumas horas, os revoltosos tomaram o poder. O movimento acabou esmagado pelo regime, com a actuação da polícia e dos militares.
Derrotado o levantamento popular, começaram as perseguições e a prisão de revoltosos, nomeadamente de dirigentes sindicais, na maioria comunistas. “No seu conjunto, os detidos somaram 254 anos de prisão”, revela José Augusto Esteves, membro da Comissão Central de Controlo do PCP e antigo deputado municipal em Leiria. Apesar do “rombo” que essas detenções provocaram no partido, meses depois o Comité Local da Marinha Grande “já estava a funcionar”.
Motim de Peniche: Revolta trava proibição da faina
Corria o dia 13 de Novembro de 1935, quando se dá o Motim de Peniche (ou “Guerra das Espoletas).
João Neves, dirigente do PCP e estudioso da história local associada à luta conta o regime, conta que a população, com destaque para os pescadores e suas famílias, insurgiu-se contra a decisão da capitania que, na sequência de um acidente associado ao uso de espoleta – técnica de pesca ilegal que implicava a utilização de dinamite para atordoar os cardumes -, proibiu a pesca durante um ano.
“A restrição abrangia cerca de 70% dos barcos e 62 mestres foram condenados a quatro meses de prisão.” A multidão ocupou o Largo Jacob Rodrigues Pereira, onde estavam as camionetas para levar os mestres para a cadeia, gritando as palavras de ordem: “Sem pesca não há pão”.
“Os sinos tocaram a rebate. As escolas e o comércio fecharam e as conserveiras adiram à luta. Formou-se uma barricada para impedir a saída das camionetas. A repressão da GNR é grande. Há tiros disparados. Um pescador – Francisco Sousa – morre. Vêm reforços militares de fora”, relata João Neves.
A revolta é contida e a polícia do regime prende 45 pessoas, mas o descontentamento continua e o Governo acaba por ceder. Tanto os mestres como os revoltosos são libertados e os barcos autorizados a ir ao mar, iniciando-se ainda a construção do molhe Oeste, “uma reivindicação antiga dos pescadores”.
Revolta dos Falcões: Trabalho nos campos pára no Bombarral
O ano de 1936 traz uma nova revolta de trabalhadores no distrito. Desta vez, é a gente do campo, vinda das quintas e das casas agrícolas do Bombarral, que se mobiliza para exigir a jornada de oito horas de trabalho.
No dia 3 de Abril, os trabalhadores páram e dirigem-se para o centro da vila. O administrador do concelho chama a GNR e pede a intervenção do Regimento de Infantaria de Caldas da Rainha.
“Quando se aproximam da entrada da vila, os trabalhadores são barrados por cerca de 100 efectivos. Mais de 30 são presos e levados para Leiria”, conta José Augusto Esteves, com base em testemunhos que recolheu junto da população.
A insurreição é, facilmente, abafada, “mas a luta continuou”, revelando-se, no entanto, longa, pois só nos anos 60 é assegurada a jornada de 8 horas. Entretanto, nos anos 40, o PCP reforça a sua acção no zona Oeste, dispondo já de Comité Local no Bombarral, em Caldas da Rainha e em Alcobaça, além dos da Marinha Grande, de Leiria e da Vieira.
Quinta da Cela: A casa onde viveu Álvaro Cunhal
Durante cerca de dois anos, Álvaro Cunhal viveu, com outro nome, na Cela, em Alcobaça, onde o partido teve uma das muitas casas de apoio aos dirigentes do partido que estavam na clandestinidade. Foi em meados da década de 40, antes da prisão de Cunhal em 1949 na zona do Luso.
Rogério Raimundo, militante do PCP, conta que, durante a sua estadia, Cunhal convivia com os proprietários da mercearia, que era da sua tia Amável, e com os canastreiros que trabalhavam numa fábrica de cabazes e cestas existente no largo da igreja.
“Falava muito com os canasteiros e com o ferreiro, conhecido por ‘Fanheiro’. As pessoas contam que era ‘um senhor muito simpático’ e que ‘pintava’, pois tinha quadros em casa”, relata Rogério Raimundo.
Álvaro Cunhal regressou à Cela já na década de 80 para participar num almoço realizado no Centro Cénico. “Não sei precisar a data. Talvez em 1982. Disse que tinha passado aqui dias muito bons e tranquilos. Contou que aqui teve lugar uma reunião importante e como partia daqui de bicicleta para o comboio ou para as zonas vizinhas de Caldas e Marinha. Lembrava-se bem do caminho para a mercearia e para o ferreiro.”
Peniche: As fabulosas fugas da fortaleza
A 17 de de Dezembro de 1954, dá-se uma das mais extraordinárias fugas das prisões do Estado Novo. O protagonista foi António Dias Lourenço, dirigente comunista detido em Peniche. Na noite daquele dia, com uma corda feita de cobertores, desceu para o mar.
Deixou-se cair para o oceano e nadou para terra, onde “graças à solidariedade dos trabalhadores de uma carrinha de peixe, que aceitaram escondê-lo e levá-lo ao Bombarral, saiu de Peniche”, pode ler-se no site do Museu Nacional da Resistência.
Seis anos depois, em 3 de Janeiro de 1960, aconteceu a fuga protagonizada por Álvaro Cunhal e nove camaradas de cárcere, que ficaram conhecidos como os Dez de Peniche. Foi uma das mais espectaculares e marcantes acções de resistência ao regime do Estado Novo. Um a um, os presos desceram as paredes da muralha com uma corda.
“No largo fronteiro à fortaleza, onde ficava a GNR, pessoas de Peniche assistiram à fuga, mas ficaram em silêncio, ajudando, com esse silêncio, ao sucesso da acção”, diz João Neves.
O antigo professor e resistente antifascista refere que este foi mais um exemplo do apoio e da “solidariedade” que a população local, incluindo comerciantes, “sempre” dispensou aos presos políticos e seus familiares, ajudando “com alojamento e refeições”.
Encontro de democratas: Plataforma de São Pedro
Em 1969, realiza-se em São Pedro de Moel uma reunião nacional da oposição democrática, da qual resulta a criação da Plataforma de Acção Comum. O jornal Avante! de Agosto desse ano dá conta da presença de “mais de 100 democratas, representando as mais diversas correntes de opinião política da oposição”.
“Procura-se uma direcção de consenso e de unidade entre comunistas e outros democratas para a afirmação da oposição”, conta José Augusto Esteves, um dos participantes no encontro, que, em 1973, está também no grupo que reúne no escritório de José Vareda, advogado de Leiria, para preparar o congresso da oposição democrática, a realizar em Aveiro, quando as instalações são cercadas pela PIDE.
Estes acontecimentos decorrem num momento de intensa luta operária na região, que mobiliza muitos militantes e quadros do PCP. Luta-se contra a destruição do sector produtivo, pela valorização do trabalho e pela igualdade entre homens e mulheres.
Há paralisações em várias fábricas, como na Crisal, em Alcobaça, nas Limas Feteira, de Vieira de Leiria, na Ricardo Gallo e na Manuel Pereira Roldão, na Marinha Grande, ou na Plásticos Edmar, no Alto Vieiro, em Leiria, onde decorre uma das reuniões da Intersindical. Era o advento do que estava para vir.
Janeiro de 1975: Comício “memorável” no pavilhão da Embra
A 18 de Janeiro de 1975, o pavilhão da Embra, na Marinha Grande, enchese para receber Álvaro Cunhal, líder do PCP que participa nas primeiras comemorações da revolta dos vidreiros em liberdade.
“Foi a manifestação política mais entusiasmante e o discurso mais marcante a que assisti”, afirma Francisco Duarte. O antigo presidente da Junta da Marinha Grande, que fez “um pouco de tudo” no partido, conta que o pavilhão estava “completamente a abarrotar” para ouvir Cunhal, que fez um discurso “exuberante e entusiasmante”. Foi, diz, um acontecimento “memorável, até para quem não era simpatizante” do PCP”.
Também José Luís de Sousa, exvereador na cidade vidreira e dirigente do PCP, fala de um momento “único”, com um comício “de exaltação e de grande esperança e fraternidade”, que decorreu “sem incidentes”, ao contrário do que viria acontecer meses depois em Alcobaça.Recorda-se ainda de Álvaro Cunhal ter dito que a Marinha Grande “pagou com lágrimas e com a vida a luta que travou contra o fascismo”.
Assalto às sedes em Alcobaça e Leiria
Meses depois do comício da Embra, o ambiente que se vive é bem diferente. Tal como no País, também na região se sentem os efeitos do chamado Verão Quente de 1975, um dos mais complicados momentos do processo revolucionário com as forças políticas divididas entre os que defendiam uma via eleitoral e o caminho revolucionário.
Em vários pontos do País registam-se acções violentas, como aquela que aconteceu em Alcobaça no dia 21 de Junho, com o assalto ao centro de trabalho (sede) do PCP.
Rui Baltazar, militante que tentou resistir à investida dos “agitadores contra-revolucionários”, ficou ferido e teve de ser hospitalizado. Conta que os incidentes começaram com a tentativa dessas pessoas tomarem a Câmara, acção que contou com “a oposição dos operários vidreiros da Crisal, localizada a 200 ou 300 metros dos Paços do Concelho e que, munidos das varas de soprar o vidro, se interpuseram entre os agitadores e o edifício”.
“Foi um golpe bem organizado, que contou com apoio de forças armadas ao serviço da contra-revolução. Havia gente armada, com o coldre à cintura, tipo cowboy”, conta Rui Baltazar.
A “turba de agitadores”, dirige-se, depois, para a sede do PCP, que ficava no segundo andar de um edifício localizado junto ao Mosteiro, por “cima da Farmácia Campeão”. No centro de trabalho estavam “cerca de 30 camaradas”.
“A tropa interpôs-se entre nós e os manifestantes. Tentei dialogar, dizer que éramos um partido legal e que defendíamos os direitos dos trabalhares. Os militares levaram os nossos camaradas. Eu e o Américo Areias recusámos sair”, recorda Rui Baltazar
Os manifestantes acabaram por invadir a sede e os dois são agredidos. “Fui respondendo como pude, mas a certa altura mandaram-me pelas escadas abaixo. Já na rua, ensanguentado e a tentar sair dali, ainda levei com um ferro na cabeça. O Areias já tinha sido levado para o hospital. Pensei que ele estava morto”, relata.
Segundo conta, houve também manifestantes feridos, alguns na sequência de incidentes com uma fogueira que fizeram, com material “retirado da biblioteca do centro de trabalho”.
Américo Areias esteve hospitalizado cerca de três semanas, recebendo alta a tempo de participar no comício que Álvaro Cunhal fez no gimnodesportivo de Alcobaça, a 16 de Agosto de 1975, onde voltou a haver incidentes.
“Esta noite em Alcobaça, correu sangue; não apenas dos provocadores contra-revolucionários, mas também de militantes progressistas”, pode ler-se no comunicado de apoio emitido nessa madrugada pela pela Comissão Central do MDP/CDE, citado num texto de Rogério Raimundo, publicado no blogue uniralcobaca.
Dias depois deste comício, a 27 de Agosto, é também assaltada a sede do PCP em Leiria, após três dias de grande tensão, com vários incidentes na cidade.
Para este sábado, data do centenário da fundação do PCP, estão previstas várias acções no distrito para assinalar a data. Durante a manhã, o PCP marcará presença em empresas que estão em laboração contínua. Simbolicamente, a Avenida do Vidreiro na Marinha Grande será decorada com 100 bandeiras do partido. À tarde, haverá concentrações e intervenções políticas em vários pontos do distrito. Começam às 14:30 horas, em Alcobaça (em frente à Câmara), Caldas da Rainha (rua das Montras), Leiria (praça Goa Damão e Diu), Marinha Grande (praça Stephens) e em Peniche (em frente à fortaleza). Ao longo dos próximos meses, estão previstas várias iniciativas, como debates e exposições, para assinalar o centenário.
RESISTENTES
Joaquim Gomes (1917-2010)
Nascido na Marinha Grande, é preso pela primeira vez aos 16 anos. A partir dos finais dos anos 30, assume tarefas ligadas à distribuição da imprensa partidária e às casas de apoio à Direcção do PCP. Em 1952 passou à clandestinidade. Foi preso três vezes pela PIDE e, por duas vezes, fugiu da cadeia, uma delas com Álvaro Cunhal. Depois da revolução, foi dirigente no partido, incluindo no Comité Central, e deputado
António Lopes de Almeida (1913 – 1949)
Operário vidreiro e militante comunista, morreu em 1949, vítima de espancamento às mãos da PIDE. Na sede da polícia do regime “foi torturado durante dois dias”. Após a sua morte, há protestos na Marinha Grande, em sua homenagem e reivindicando o retorno do corpo à sua terra natal, mas a PIDE não o permite e o corpo é sepultado em Lisboa
José Moreira (1912-1950)
José Moreira foi operário vidreiro, militante comunista e durante alguns anos responsável pelas ligações com as tipografias clandestinas do partido. Morreu aos 38 anos, assassinado pela PIDE, na sequência das violentas torturas infligidas durante os interrogatórios. “O seu corpo foi atirado da janela do 3.º andar da sede da PIDE (…) A polícia política procurava assim encobrir a morte, encenando um suicídio”, ler-se no site do Museu do Albuje
Manuel Esteves Carvalho – ‘Manecas’ – (1908-1935)
Nascido na Marinha Grande, foi marinheiro da Armada tendo participado na revolta de 7 de Fevereiro de 1927, que exigia a demissão do governo e o regresso à constituição de 1911. Acabou preso e deportado. Após a sua libertação e no âmbito da reorganização do PCP a partir de 1929, regressa à Marinha Grande. Já doente, participa na preparação do 18 de Janeiro de 1934
José Gregório (1908-1961)
