Chegam sorridentes e saúdam os presentes com o “bom dia” num português bastante aceitável. À sua espera, têm pão acabado de sair do forno, bolo, café e chá, preparados pelas voluntárias da associação Nascentes de Luz, na Maceira, em Leiria.
Fazem a pausa da manhã na primeira sessão do curso de permacultura, orientado pela leiriense Eunice Neves, uma das actividades do projeto Barakat-Leiria (“Abençoada-Leiria”), dinamizado pela InPulsar – Associação para o Desenvolvimento Comunitário, com o intuito de promover a integração e autonomia de 17 jovens activistas afegãos.
No grupo está Qasim Lessani e Mustafa Hussaini, de 25 e 22 anos, respectivamente. O primeiro, estudante de informática e, o segundo, de psicologia. Tal como os restantes elementos do grupo, faziam parte de uma organização que desenvolvia projectos relacionados com direitos humanos em Cabul, no Afeganistão.
Participaram em manifestações contra os talibãs e a favor das mulheres, da liberdade religiosa e da multiculturalidade e foram voluntários em programas de apoio a meninos de rua e a vítimas de violência doméstica. Projectos que caíram por terra, com a chegada ao poder do regime Talibã, em Agosto de 2021. “Senti a minha vida em grave perigo. Só me restava fugir”, conta Mustafa, que, durante mais de um ano, viveu escondido nos arredores de Islamabad, capital do Paquistão.
“Fugiram a pé e estiveram refugiados em condições deploráveis. Com os vistos a caducar, tinham de se manter escondidos”, relata Ana João Santos, coordenadora do Barakt-Leiria, explicado que o projecto nasceu do desa o lançado à InPulsar para participar na rede internacional criada para dar refúgio aos activistas daquela organização afegã, retirando-os de Cabul e colocando-os, em segurança, em países como Alemanha, Canadá e EUA Portugal também entrou na missão.
O primeiro grupo de activistas chegou ao País em Março de 2022 ef oi acolhido em Mértola, num programa de integração coordenado por Eunice Neves, sob a égide da associação Permaculture for Refugees. Mais tarde, houve necessidade de receber mais pessoas, mas “em Mértola não havia condições”.
“Como a InPulsar já tinha um projecto com refugiados – Aqui Mundos – fomos desa ados a receber esses jovens”, conta Ana Baião, revelando que o programa de integração, desenhado para um ano e meio, conta com o apoio de oito nanciadores, “ligados à permacultura”.
Sarar as feridas
Durante 18 meses, os jovens têm casa assegurada, incluindo água e luz, e um valor mensal para as despesas diárias. Têm ainda acompanhamento psicológico, através do Serviço Jesuíta aos Refugiados, e médico, através de uma consulta semanal criada pelo Centro de Saúde Gorjão Henriques, adianta a coordenadora do projecto, frisando que este tipo de ajuda se tem revelado “essencial”, dado que, entre o grupo, havia muitos problemas físicos a sarar, fruto das condições “deploráveis” em que viveram na fuga de Cabul e já escondidos no Paquistão.
O processo de integração inclui aulas de Português, sessões temáticas para falar de assuntos diversos, como nanças, nutrição ou sexualidade, e momentos culturais, como visitas a museus ou monumentos e passeios para conhecer a região e o País.
Os jovens fazem ainda três momentos de voluntariado por semana, onde de inclui um centro de dia para idosos, uma instituição que trabalha com de cientes e os projectos da InPulsar no bairro da Cova das Faias ou na Quinta do Alçada.
Qassim e outros cinco colegas escolheram a Nascentes de Luz, onde ajudam na quinta da associação, dando continuidade ao projecto de permacultura aí desenvolvido. “Vêm à quinta-feira. Sentem-se em casa. São encantadores”, diz Margarida Monteiro, que, em 2007, deixou a vida religiosa e acabou por fundar a Nascente de Luz, que presta apoio pessoal e à família e promove a ecologia.
Qassim conta que, uma parte do dia, é reservado às aulas on-line, que a universidade onde estava a tirar o curso tem conseguido manter. “Foi muito bom para mim que não tenham parado”, salienta, confessando que um dos seus objectivos é terminar o curso e continuar a ajudar o seu país, mesmo que à distância. Um desejo partilhado por Mustafa, estudante de psicologia.
“Quero continuar a minha formação e as actividades de promoção dos direitos humanos, mesmo que seja online. Tudo o pudermos fazer, será uma ajuda”, afirma o jovem, que, tal como os colegas, tem sempre no pensamento a família que está no Afeganistão, nomeadamente, os pais e o irmão mais novo. “A família é uma preocupação constante. Por força do activismo político que tinham, a família está em perigo. Muitos dizem que o corpo está cá, mas a mente mantém-se lá”, revela Ana João Santos.
“Aqui, posso ser eu” Sobre a sua vivência em Portugal, tanto Qassim como Mustafa destacam a forma positiva como foram recebidos – “a interacção diária com os portugueses tem sido muito boa”, diz Quassim -, mas lamentam algumas burocracias, como o facto de só há um mês terem começado as aulas de Português ou de ainda não poderem aceder a cartão bancário. Obstáculos que o sentimento de liberdade ajuda a minimizar.
“Pela primeira vez na minha vida posso experimentar ser eu mesmo”, afirma Qassim, para quem a vinda para Portugal e para Leiria tem sido “muito libertador”. “Aqui, posso ser eu. Seja qual o estilo de vida que escolher. Não há julgamento.” Há ainda a experiência proporcionada pelos momentos de voluntariado, que funcionam com uma “boa ferramenta de integração”, salienta Ana João Santos.
A técnica da InPulsar frisa que essa componente do projecto ajuda os jovens a criarem uma rede “informal de suporte”, que terá um papel “importante” a desempenhar quando o programa terminar. “O objectivo é irmos trabalhando para que, no final dos 18 meses, eles consigam autonomizar-se”, salienta a coordenadora, adiantando que, nesta fase, estão já a substituir os momentos de voluntariado por formação ou trabalho.
Entretanto, três dos elementos do grupo conseguiram uma bolsa de licenciatura para três anos no Instituto Superior de Administração e Gestão, no Porto, tendo iniciado as aulas na semana passada. “Já estão a começar a voar. É isso que se pretende”.