O memorial dos opositores ao regime fascista entrados na cadeia da Fortaleza de Peniche entre 1934 e 1974 baseia-se numa investigação da URAP – União de Resistentes Antifascistas Portugueses, nos arquivos da Torre do Tombo, com resultados apresentados publicamente pela primeira vez em 2013, em parceria com o Município. Entre os 2.510 presos políticos, há 145 nascidos no distrito de Leiria, de acordo com a listagem disponibilizada ao JORNAL DE LEIRIA. Incluindo duas mulheres, Maria de Jesus e Teresa Marques, as únicas, em todo o País, enviadas para Peniche pelo Estado Novo.
Inaugurado na quinta-feira, 25 de Abril, pelo primeiro-ministro António Costa, e pela ministra da Cultura, Graça Fonseca, dois dias depois, o memorial é uma amostra, com a exposição Por Teu Livre Pensamento, também patente desde a semana passada, do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, que o Governo espera ver concluído até ao final de 2020.
Conforme explicou a museóloga Aida Rechena, durante uma visita guiada no sábado, 27 de Abril, data da libertação dos últimos presos políticos da Fortaleza de Peniche, no ano de 1974, o memorial é “a peça fundamental” do projecto, “a peça rainha”, porque materializa “o direito à nomeação” e simboliza o “reconhecimento do País” a todos os que foram encerrados atrás de grades por lutarem “pela liberdade e contra o fascismo”.
Dos 145 nomes com naturalidade do distrito de Leiria, segundo a pesquisa da URAP, a maior parte são da Marinha Grande (41) e de Leiria (36), muitos deles vidreiros, mas também empregados do comércio e de escritórios, pedreiros, trabalhadores rurais, alfaiates, barbeiros, tipógrafos, carpinteiros, ferroviários, estudantes, professores, advogados, médicos, militares e polícias.
Os motivos alegados para a detenção incluem averiguações, participação no movimento revolucionário de 18 de Janeiro de 1934 e actividades subversivas, outros identificam os reclusos como comunistas, membros de organizações clandestinas e combatentes com os marxistas em Espanha.
Residente na Marinha Grande, Manuel Ferreira Gonçalves tem o registo número 26.691: entrada em 20 de Fevereiro de 1965 por actividades contra a segurança do Estado – na prática, ligações ao Partido Comunista – e saída em liberdade quase seis meses volvidos. Mas esteve também no Aljube, no Porto e em Caxias. Actualmente com 81 anos de idade, recorda, de Peniche, onde regressou no sábado, com a mulher, a dureza dos interrogatórios: “De estátua quatro dias. Em pé, não nos deixavam dormir”.
Juntamente com o memorial, estão já disponíveis algumas fichas prisionais projectadas, em grande formato, por meios digitais. Contêm, por exemplo, as informações recolhidas pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), que nem sempre correspondiam à verdade. “No futuro, gostaríamos que todas as fichas estivessem no computador para que os familiares – e outras pessoas interessadas – pudessem fazer pesquisa e lessem toda a ficha”, explica Aida Rechena.
Por uma pequena escadaria, sobe-se ao Parlatório, o único espaço a que as famílias tinham acesso e o único contacto dos presos com o mundo exterior. A configuração continua igual, com a divisória em vidro a separar as duas realidades. Pais e filhos, maridos e mulheres, nunca se tocavam. Eram obrigados a falar alto, para as conversas, sem qualquer privacidade, não escaparem à vigilância rigorosa e intimidatória dos guardas.
“Havia muitas restrições e as visitas eram com a PIDE e a GNR em cima dos visitantes e dos visitados, a ouvir e a proibir de se falarem determinadas coisas”, descreve Manuel Gonçalves. Muitas vezes, à última hora, o reencontro não acontecia, por castigo ou pressão para quebrar psicologicamente determinados alvos. “Um dia às 11 da noite partimos para o Porto e não nos deixavam avisar as famílias. Era uma forma de tortura também. A minha mulher ir para Lisboa para me visitar e eu estar já no Porto. E depois ainda dizerem 'Ah, foi para casa'”.
No Parlatório celebraram-se casamentos, um deles o de Domingos Abrantes, actual conselheiro de Estado eleito pela Assembleia da República. Só assim as namoradas conquistavam o direito à visita.
Numa das salas são actualmente exibidos testemunhos em vídeo de descendentes de uma dezena de presos políticos, incluindo João Maria Varela Gomes, Sérgio D'Espiney, Diniz Miranda, José Vitoriano e João Joaquim Machado. Noutra, é lembrada a solidariedade da população de Peniche – através da cedência de habitações, doação de bens alimentares ou acções de reivindicação social – e são evocados exemplos de moradores da vila piscatória castigados, por retaliação, pelas autoridades.
Estão também expostos vários documentos históricos, desde relatórios de vigilância pela PIDE a uma relação de matrículas dos automóveis que chegavam à Fortaleza.
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As celas individuais permanecem inacessíveis, mas “vão ficar rigorosamente como estavam” quando o monumento “era cadeia”, garante Aida Rechena, sobre o projecto do arquitecto João Barros Matos para o Museu Nacional da Resistência e da Liberdade.
Excepto as janelas que hoje têm vista para o mar e à época se encontravam tapadas. Os reclusos passavam 23 horas por dia fechados e só saíam para comer no refeitório ou passar pelo pátio, totalmente murado, de onde não conseguiam avistar mais do que o céu por cima das cabeças.
A exposição Por Teu Livre Pensamento deve o título ao primeiro verso do poema Abandono, da autoria de David Mourão Ferreira, em 1962, cantado por Amália e conhecido por Fado de Peniche: “Por teu livre pensamento / Foram-te longe encerrar / Tão longe que o meu lamento / Não te consegue alcançar / E apenas ouves o vento / E apenas ouves o mar”.
Conforme explica Aida Rechena, a exposição funciona como “antevisão daquilo que será o Museu”. Comissariada pela Direcção Geral do Património Cultural, com a colaboração, como organizadores, de Domingos Abrantes, Fernando Rosas, João Barros Matos, José Pacheco Pereira, Paula Araújo da Silva, Silvestre Lacerda e Teresa Pacheco Albino, está distribuída por três temas: o 25 de Abril, a repressão e violação dos direitos humanos pela ditadura durante o Estado Novo e a resistência ao fascismo. Reúne fotografias, documentos, desenhos, vídeos e peças de acervos públicos e privados.
Os visitantes são convidados a observar a imagem captada por Eduardo Gageiro de um soldado a retirar a fotografia de Salazar da parede, a ler a ficha prisional de Álvaro Cunhal, o histórico dirigente comunista, que escapou da Fortaleza de Peniche, numa fuga colectiva, com a ajuda de um guarda, e a conhecer os objectos construídos pelos próprios presos, que incluem um dominó e um jogo de tabuleiro Não te Irrites.
“E vão encontrar, para mim é o documento mais extraordinário, uma mensagem clandestina naquilo que chamamos escrita milimétrica”, destaca Aida Rechena. Palavras escondidas no papel dos cigarros de enrolar, a servir de ponte com o exterior.
Depois, na Capela de Santa Bárbara, é revisitada a história da Fortaleza como estrutura militar de defesa do reino, enquanto no Fortim do Redondo se espreita o chamado segredo, que tinha a cela do castigo. De lá escapou em 1954 António Dias Lourenço, com a ajuda de uma corda feita de cobertor desfiado, numa fuga icónica através do mar.
As visitas guiadas estão sujeitas a inscrição prévia. Na inauguração da exposição Por Teu Livre Pensamento e do memorial que identifica 41 presos políticos naturais da Marinha Grande, 36 do concelho de Leiria, 13 de Alcobaça, 9 de Caldas da Rainha, 8 do Bombarral, 8 de Pombal, 5 de Óbidos, 5 de Castanheira de Pera, 4 da Batalha, 4 da Nazaré, 4 de Porto de Mós, 3 de Peniche, 2 de Castanheira de Pera, 2 de Figueiró dos Vinhos e 1 de Pedrógão Grande, homenagem a que se juntaram os líderes do PCP e do Bloco de Esquerda, o primeiro-ministro António Costa falou na criação de “uma escola aberta e dinâmica de cidadania e de futuro”.
O futuro Museu Nacional da Resistência e da Liberdade em Peniche deverá empregar 40 pessoas e tem um custo estimado de 3,5 milhões de euros. Para trás fica a ideia de concessionar a Fortaleza a privados.