Lá fora, o calor, mais de 25 graus. Dentro de portas, no Museu da Imagem em Movimento, nove pessoas trocam o possível e apetecível sábado de praia pelo escurinho do auditório António Campos e o filme O Terceiro Assassinato, do realizador japonês Hirokazu Koreeda. É a sessão número três do Ciclo de Cinema Nipo-Sul-Coreano que está a decorrer desde Março no m|i|mo, em Leiria, com curadoria de Bruno Carnide e Cátia Biscaia. Uma vez por mês, sempre às 15 horas e sempre com entrada livre.
Após 124 minutos de filme, começa a conversa. Fala-se sobre Koreeda e sobre a obra que acaba de ser projectada, um ensaio acerca da condição humana e das relações em sociedade, com tonalidades que se encontram noutros trabalhos do autor. Um certo existencialismo, o drama psicológico, o olhar sobre a família. O diálogo é aberto e prossegue durante mais de meia-hora no auditório António Campos do m|i|mo. O Terceiro Assassinato leva o espectador da certeza para a incerteza, é um drama de tribunal que critica o sistema de justiça onde nem sempre se procura ou deseja a verdade, que utiliza o crime e o julgamento como ponto de partida para questionar a noção de certo e errado e a distância entre o bem e o mal. “Não quero ver sozinho porque acho que gosto mais do filme depois quando vocês o contam. Dá sentido”, diz um dos espectadores. Salientam-se os simbolismos semeados pelo realizador japonês, o reflexo no vidro que sobrepõe arguido e advogado como num único pensamento, a empatia entre eles, o jogo de pormenores, a dinâmica, o ritmo, os enigmas que ficam em aberto como um apelo para que o público não se esqueça do enredo nem dos temas que o enredo propõe para reflexão.
“O filme não termina quando acaba”, salientam Cátia Biscaia e Bruno Carnide. Daí o interesse em promover o debate depois do visionamento, como quem dinamiza um cineclube. “Ver um filme numa sala escura e tela grande é uma experiência muito diferente daquela que acontece quando o vemos em casa”, realçam. “E a troca de vivências de cada um acaba por se revelar algo de muito proveitoso para a nossa própria concepção do filme a que estamos a assistir. No nosso caso, como conversamos no final, essa situação adensa-se e elevamos a simples visualização de um filme a um outro patamar. A ideia é que o filme seja o ponto de partida para uma reflexão superior: quer sobre o conteúdo do argumento, cinematografia, som, música, narrativa ou mesmo sobre a nossa própria vida e a sociedade que nos envolve”.
Inserido no Plano Local de Cinema do concelho de Leiria, o Ciclo de Cinema Nipo-Sul-Coreano contempla mais cinco sessões, entre 2 de Julho e 5 de Novembro, para dar espaço a realizadores que, segundo Cátia Biscaia e Bruno Carnide, têm vindo a ganhar “muita notoriedade” nos últimos anos, com títulos que não são fáceis de encontrar para assistir em sala.
Além de O Terceiro Assassinato, pelo m|i|mo já passaram Shoplifters (de Hirokazu Koreeda) e OldBoy (de Park Chanwook) e estão previstos A Idade das Sombras (de Jeewoon Kim), Depois da Tempestade e A Nossa Irmã Mais Nova (ambos de Hirokazu Koreeda), a Eterna Desculpa (de Miwa Nishikawa) e Ramen Shop (de Eric Khoo).
O objectivo da curadoria no m|i|mo, que inclui outras iniciativas, projecto acolhido pela directora Sofia Carreira e pela vereadora da Cultura no Município de Leiria, Anabela Graça, é levar ao Museu da Imagem em Movimento uma “programação digna” na área do cinema, explicam Cátia Biscaia e Bruno Carnide. “Algo novo, fresco, que fosse difícil de assistir noutro local. Algo ligado à contemporaneidade, mas com um pé no passado. Queremos, também, fazer parte de uma educação para o cinema. Pretendemos criar uma alternativa. Mostrar ao público que existem muito mais filmes e muito mais coisas dentro de um filme”. Apesar de “um museu que é único na Europa”, dizem ao JORNAL DE LEIRIA, “o cinema é uma arte pouco explorada em Leiria”. Pensar sobre ela, “pode fazer crescer um interesse escondido”.
Na Federação Portuguesa de Cineclubes, não se encontram publicamente registados quaisquer cineclubes no distrito de Leiria, numa lista com cerca de 30 entidades. No entanto, há pelo menos dois, em Caldas da Rainha e o Cine-clube de Pombal, que retomou actividade no início de Maio, “com o intuito de promover a arte cinematográfica e ir ao encontro dos cinéfilos pombalenses”. M, de Fritz Lang, de 1931, foi o primeiro filme a ser exibido e integra um ciclo com duas sessões mensais, gratuitas, no mini-auditório do Teatro-Cine de Pombal. No próximo dia 26 de Maio, está programada a exibição de Grand Budapest Hotel, de 2014, uma comédia assinada por Wes Anderson.
Segundo estatísticas do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), que se baseia, exclusivamente, nos dados que lhe são reportados, a exibição de filmes por cineclubes no distrito de Leiria atraiu 181 espectadores no ano de 2021, em 13 sessões, todas da iniciativa da associação CulturCaldas, ligada ao CCC, o Centro Cultural e de Congressos de Caldas da Rainha.
Ao todo, no ano passado, as salas de cinema localizadas no distrito de Leiria venderam mais de 155 mil bilhetes, apesar dos confinamentos e de outras restrições impostas pela pandemia.