Ao longo de quase duas décadas a trabalhar como assistente social junto de reclusos em vários estabelecimentos prisionais da região, Carlo Melo coleccionou um conjunto de histórias partilhadas por quem se tatuou dentro da prisão. O ritual é doloroso, perigoso, mas pleno de simbologia.
O resultado dessas conversas informais, sobre dor, isolamento, família, religião e crime, está agora disponível ao público, através de uma edição de autor, que o vicepresidente da Associação Novo Olhar II, da Marinha Grande, viu sair à rua em Maio deste ano. Com a ajuda de Carlo Melo, também nós folheamos aqui o livro Tatuagens em contexto prisional português – 7 histórias.
Para cada desenho um símbolo diferente
O assistente social começa por salientar que desde sempre foi um apaixonado por tatuagens, da arte que se cria através da tatuagem. “Hoje banalizou-se um pouco e por vezes nem tem grande significado para quem a faz. Mas estas tatuagens de que falo estão cheias de significado. Há um código naquela micro sociedade que é paralela à nossa”, compara Carlo Melo. “Existe um código subentendido em cada tatuagem e assumir fazê-la é assumir que esse desenho pode ter consequências”, realça o técnico.
“Quem escolhe tatuar uma caveira de alguma forma se associa a um homicídio”, exemplifica o assistente social. Já a cruz suástica, símbolo da Alemanha nazi, “é mal vista entre os detidos”, atendendo ao facto de, dentro de alguns estabelecimentos prisionais, existirem grupos organizados de negros e de ciganos a quem esta tatuagem nada agrada. “Tatuar um desenho destes dificulta a integração de quem a escolhe”, aponta Carlo Melo.
Por outro lado, tatuar pintas no rosto está associado a passividade sexual e há quem o faça para revelar desde logo qual o seu interesse nesta matéria, conta o assistente social. Já “os olhos tatuados nas costas remetem para a fragilidade das relações e de como alguém que está detido precisa de estar vigilante. Um dia arranjam-me tabaco e no outro dia apunhalam-me e eu nem sei bem como nem porquê”, relata Carlo Melo. E quanto aos punhais e às facas tatuadas, estão geralmente associados à luta negra, à questão ultramarina e ao orgulho da raça, descreve o assistente social.
Entre o traço tosco e a perfeição
As prisões são um mosaico de classes sociais e profissionais. Entre os reclusos há quem perceba de gestão, de carpintaria, mas também há artistas. “Eu próprio cheguei a comprar muita arte produzida em estabelecimentos prisionais”, conta Carlo Melo. “Por essa razão, é possível encontrar tatuagens feitas na prisão que são muito mal conseguidas, mas dos crimes cometidos também há outras que são tão bem executadas como se tivessem sido desenhadas numa loja”, repara o assistente social. Mas não é só o jeito do tatuador que determina a perfeição da tatuagem feita neste contexto, acrescenta.
“É preciso salientar que as tatuagens são uma prática proibidíssima na prisão. Vale a apreensão do material e a ida para a solitária”, expõe Carlo Melo. “Tudo o que possa servir de agulha é perigoso para os guardas, mas também para os reclusos, já que podem levar à transmissão de hepatites e de HIV”, realça o assistente social.
Fazer tatuagens nas prisões é por isso, na maioria das vezes, um processo muito arcaico. A cinza da rolha queimada, uma vez misturada com água, serve de pigmento. Já a agulha pode ser improvisada com uma qualquer mola de isqueiro, conta Carlo Melo. Sendo que, ao longo destes anos, os tatuadores demonstram cada vez mais rasgo criativo. Pequenos motores, como aqueles que fazem parte de carrinhos e de outros brinquedos, são agora muito utilizados para tatuar. Servem para acelerar o processo e aperfeiçoar o traço, explica o vice-presidente da Associação Novo Olhar II. De um processo arcaico, de um aspecto tosco e que resultava em grandes infecções, muitas vezes desinfectadas com urina, passou-se a um método eléctrico de tatuar, compara o assistente social.
A tatuagem que ainda emperra a integração
Carlo Melo, também ele tatuado, explica que a mentalidade da sociedade portuguesa muito mudou nas últimas décadas. Recorda-se do quanto se preocupava em expor o corpo, tanto mais que muitas vezes trabalhava com entidades públicas. Mas o assistente social realça como esse preconceito se esbateu ao longo do tempo. Ainda assim, também entende que determinado tipo de tatuagens, pela carga simbólica que têm, e que remetem o individuo para o contexto prisional, em nada abonam ainda na hora de voltar ao mercado de trabalho. As cinco pintas na mão, símbolo do homem preso entre quatro paredes, ou a lágrima desenhada junto ao olho, que remete para o sofrimento de quem deixou os seus lá fora, a chamada “lágrima de prisão”, são alguns desses casos.
Uma prática sobretudo masculina
Ao longo das paginas de Tatuagens em contexto prisional português – 7 histórias, há sete histórias que se destacam, todas elas de homens. O Luís, homem de quarenta e muitos anos, que já terá passado metade da vida detido; o José, que talvez possa já ter morrido, supõe Carlo Melo; um outro José, o “carreira”, que tinha uma balança tatuada no braço e disse até ao final dos seus dias que tinha sido condenado injustamente; o Ricardo “quedas”, sempre “com grande queda para se meter em sarilhos”, explica Carlo Melo. Um outro Luís, detido por tráfico; o Baltazar, também ele detido por tráfico, um homem de cerca de 60 anos com Cristo tatuado no peito. E o José Reis, “o coxo”, a quem já falta uma perna e quase toda a audição.
Carlo Melo explica que as tatuagens feitas em contexto prisional ainda são uma prática sobretudo masculina. Tem havido, no entanto, algumas mudanças de tendências nos últimos anos. Algumas mulheres passaram a tatuar os nomes dos seus filhos e até entre as mulheres de etnia cigana essa moda já começou a pegar. Os homens ciganos, que também não tinham por tradição marcar o corpo, começam a fazê-lo. Decoram os corpos com motivos religiosos. Porque, se pecaram, é junto de Deus que querem agora redimir-se, revela Carlo Melo.