A pandemia de Covid-19 parece estar a caminhar para uma doença endémica, menos grave para a maioria da população. Mas, os últimos dois anos ficarão gravados na memória dos profissionais de saúde da Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) do Hospital de Santo André, em Leiria. As marcas físicas, mas sobretudo psicológicas e emocionais, dificilmente desaparecerão.
Nos últimos dois anos, passaram pela UCI ricos, pobres, jovens e menos jovens e idosos, com Covid-19 e em risco de vida. Uns morreram, outros sobreviveram. Cada um com a sua história, que não deixou indiferente os profissionais de saúde, que se socorreram do seu mecanismo de auto- -defesa para enfrentar os dias turbulentos por que passaram. “Estamos muito menos desgastados, mas isso não quer dizer que não tenhamos todos umas sequelas emocionais daquilo que aconteceu. Cada um sabe como viveu a pandemia, até porque somos humanos. Alguns de nós também perderam familiares e amigos”, revela Ana Araújo, intensivista.
O JORNAL DE LEIRIA voltou à UCI cerca de um ano depois e muita coisa mudou. O pânico e o alerta que existiam à passagem de um doente Covid para a unidade, praticamente desapareceram e os equipamentos de protecção individual (EPI) aligeiraram-se.
Ao transpor a porta que dá acesso ao internamento já não é necessário vestir fato impermeável, colocar touca, viseira ou luvas. Os profissionais de saúde ganharam leveza nas suas acções. “O que fez a diferença? Aprendemos com a doença e estamos vacinados. Isso dá-nos um grande conforto e segurança, embora não nos livre da doença. Só que é uma doença muito mais ligeira”, afirma Luís Pereira, director da UCI.
O barulho das máquinas é o mesmo e a azáfama de médicos, enfermeiros e auxiliares na UCI pouco diminuiu, porque todos os doentes que ali chegam estão em risco de vida, mas a tranquilidade que se observa salta agora à vista. Também o espaço físico sofreu mudanças. Foram criados três quartos com pressurização negativa para doentes Covid-19. Uma espécie de bunkers com um grande poder de extracção, de onde dificilmente escapa qualquer vírus ou bactéria.
O investimento de 50 mil euros em cada quarto permite à unidade, neste momento, trabalhar no restante espaço com doentes com patologias diversas. Os tempos que os profissionais de saúde passaram foram difíceis, mas também de superação, dizem. Preferem recordar as histórias com finais felizes, mas falar do passado ainda os deixa com a lágrima no canto do olho. “Parece que já foi há muito tempo, mas não”, desabafa Lioneta Silva, enfermeira especialista que assumiu a coordenação do serviço quando a pandemia eclodiu.
Confessa que chorou, nas pausas que fazia e em casa. “Partilhámos o sofrimento e as dificuldades de cada um, o que nos fez crescer muito e ultrapassá-las com alguma serenidade”, afirma, revelando, com um brilho nos olhos, o pedido de casamento que presenciou.
Manuel, chamemos-lhe assim, 42 anos, esteve 72 dias na UCI. “Passou por todo um processo de muita dificuldade, porque esteve em coma induzido durante muito tempo e perdeu muita massa muscular. Tinha um filho pequenino e a família contactava quase diariamente. Esteve muitas vezes a desistir, mas sobreviveu”, conta.
“Quando já estava em fase de recuperação, a companheira veio pedi-lo em casamento e foi extraordinário. Fizemos uma festinha com um bolinho e florzinhas. Ele chorou. O doente recuperou e já nos veio visitar. Está feliz. Manda-nos mensagens e fotografias dos locais onde passa férias. Essa ligação que fica é o que nos dá força”, afirma com os olhos a sorrir, já que a máscara esconde a expressão de felicidade na cara.
“Tenho marcas que jamais vão desaparecer, porque ficámos todos com feridas no rosto de tanto equipamento que usávamos. Mas também ficámos com marcas emocionais”, reforça Lioneta Silva.
Ana Araújo realça a dificuldade de trabalhar, sobretudo em técnicas invasivas, usando os EPI idênticos aos que utilizam perante casos de Ébola. “Ficávamos com os óculos e as viseiras totalmente embaciadas, ficávamos sem capacidade de visão, suávamos debaixo daquelas batas, eram condições físicas de trabalho quase desumanas. Do ponto de vista físico era muito exigente”, adianta a especialista. A intensivista acrescenta que a dificuldade que enfrentaram fê-los ficar, por vezes, com aquele sentimento de que podiam ter feito mais um pouco.
“Apesar de tudo, fizemos um bom trabalho, com algum stress à mistura, e adaptámo-nos ao que foi aparecendo.” A médica não esquece, contudo, as situações com que foi confrontada. Ao contrário do doente típico da UCI, que devido à falta de oxigénio fica um pouco desorientado, o doente Covid está consciente.
“Quando íamos explicar-lhes que tinham de ser entubados e ventilados, a maioria pensava: pronto, isto vai correr mal. Do ponto de vista emocional, isso foi muito pesado para nós, porque não houve um que não pedisse para falar com a filha ou com a esposa”, recorda.
Nesses momentos prévios à sedação, “davam recados, códigos, referiam negócios, como que a preparar a família para as questões práticas para o caso de não sobreviverem”. Outros perguntavam se iam acordar. Resposta a que Ana Araújo nunca pôde responder com certezas, mas tentou deixar passar um nim da forma mais serena possível. “Nunca negámos nenhum telefonema a alguém. E lembro-me de estar a entubar um senhor e ele dizer: o meu irmão morreu há 15 dias”, revela ainda emocionada.
Luís Pereira perdeu um dos seus grandes amigos. Uma das primeiras vítimas da Covid-19 em Leiria. Além desse choque, o especialista enfrentou muitas histórias, algumas com finais felizes, outras nem tanto. Muitas delas “limpou da memória por sanidade”, mas os olhos entristecem quando aponta a morte de pessoas saudáveis ou pais de enfermeiros e médicos. Uma das histórias que o marcaram foi o caso de uma senhora abastada da sociedade leiriense.
Segundo explica Luís Pereira, não foi vacinada porque filho, médico dentista, lhe explicou que não precisaria, porque, a sua condição financeira lhe permitia ter uma boa alimentação e as melhores condições em casa. “Marcou-me a arrogância da senhora. Estava a ser entubada e ainda perguntou à médica: o meu filho é doutorado e você, é doutorada? Ela estava a tentar salvar-lhe a vida”, destaca. A doente viria a falecer. Quando ligaram ao filho para se despedir da mãe, “recusou”.
“Essa história marcou-me, pela arrogância de uma família, que julga que está imune a uma coisa destas”, sublinha Luís Pereira.
O intensivista considera ainda que foi de uma “violência extrema” para os familiares e médicos a comunicação de um óbito durante a Covid. “O doente era deixado na porta da urgência e os familiares nunca mais o viam. As visitas estavam proibidas. A informação era dada por telefone. Às vezes, era tão dramático que as pessoas nem no caixão viam os familiares, porque iam fechados, e ficava sempre a dúvida emocional se aquele era o seu familiar”, lamenta.
Com a evolução do conhecimento sobre a doença, também aqui se verificaram mudanças. “Quando há a expectativa de fim à vista, chamamos os familiares mais próximos, equipamo-los e vão despedir-se do familiar. Essa despedida emocional tem sido um grande conforto para as famílias e para nós”, reconhece.
Agora, há menos doentes e os que entram na UCI não estão vacinados por opção, ainda não receberam as três doses, por alguma razão, ou têm comorbilidades associadas. Era o caso do único utente internado com Covid-19, quando visitámos a unidade, um transplantado renal. Com a garantia da perda do rim que recebeu, a dúvida de Luís Pereira era a sua sobrevivência, dada a gravidade do caso.
“Este é um doente muito grave. Além do suporte ventilatório, tem diálise. Estão a falhar dois órgãos no mínimo. O pulmão e o rim. E também está a falhar o coração, porque tem medicamentos para bombear o coração.”
Fora do quarto isolado, a unidade tinha mais doentes com patologias diversas: sequelas de um acidente rodoviário, uma infecção grave cuja origem ainda estava a ser estudada, uma doença hepática grave que se agravou enquanto aguarda um transplante e duas tentativas de suicídio. E será que há mudanças de opinião quanto à vacinação por quem não o quis fazer? Luís Pereira não tem certezas, até porque “muitos morrem”.
“Um pai percebeu a asneira que fez ao influenciar o filho contra a opinião da mãe, numa situação de divórcio. Neste caso houve arrependimento”, diz. Noutro, uma pessoa com cerca de 50 anos “ficou com tantas mazelas” que precisa primeiro de recuperar. Luís Pereira afirma que hoje todos estão mais “serenos e sabedores”.
“Sabemos melhor qual o timing ideal para virar os doentes de barriga para baixo ou iniciar a diálise. Aqui passámos a usar filtros, que custam dois mil euros, mas apesar de ser uma grande despesa, tem salvo muitas vidas”, confessa.
“Sabemos que vamos ter de conviver com este vírus. Será como a gripe. Iremos vacinar-nos todos os anos. Quem não se vacinar é que vai ser pasto fácil para o vírus, que vai sobreviver” nesses organismos, avisa o intensivista.