Quem o vê de fato de mergulho, a sair da Lagoa de Óbidos carregado de amêijoas, dificilmente imagina que Rui Elias conta 63 anos, 40 dos quais dedicados ao ofício de mariscador. A idade parece não lhe pesar, mesmo quando a sua arte o obriga a várias horas de apneia intermitente.
Foi neste vai e vai de mergulhos, neste remexer de areia, que o JL encontrou um grupo de mariscadores, gente rija que mantém viva a tradição na Lagoa de Óbidos e impulsiona a economia local.
Natural do Vau, Rui foi operador de máquinas numa indústria, mas desistiu para abraçar a actividade que o seu pai já tinha. Herdou dele a embarcação e o gosto por mariscar. “É muito difícil e já devia estar reformado. Mas gosto disto, se não nem andava aqui. Os ossos já rangem, mas ainda me aguento”, conta o mariscador, num misto de valentia e teimosia.
Do grupo, que entrou na água às 6 da manhã [LER_MAIS]para sair perto das 13 horas, fazem também parte António e Paulo Clemente, irmãos de 57 e 52 anos, respectivamente. “Fui carpinteiro e agricultor. Ajudava o meu pai que tinha estufas. Mas nos últimos 20 anos só me dedico a isto”, explica António. Também o seu pai chegou a ser pescador e mariscador na lagoa e foi com ele que os filhos aprenderam as manhas do ofício.
“O pior é estar na água horas seguidas durante o Inverno”, conta António. E no regresso, ainda é preciso separar o pescado por espécies, antes de o entregar nas indústrias depuradoras. E há que preparar redes e outras artes de pesca para retomar a actividade na madrugada seguinte.
Paulo Clemente também trocou o emprego numa indústria de celulose pela apanha de marisco. “Gosto de ser o meu patrão”, diz o mariscador.
Desta vez, em equipa com o irmão, trouxe à tona cerca de 20 quilos de “amêijoa- japónica”. “Foi um dia bom”, reconhece.
Proibido capturar sem licença
Sérgio Félix preside a Associação de Pescadores e Mariscadores Amigos da Lagoa de Óbidos, que conta com cerca de 140 associados. Explica que o ponto forte da lagoa é o seu marisco (amêijoa-boa, amêijoa-macha, amêijoa-japónica, amêijoa -relógio e berbigão) e peixe (sobretudo a enguia). A maior parte dos pescadores e mariscadores da associação vive exclusivamente da apanha e venda destas espécies, refere Sérgio.
Para exercer a actividade é necessário ter licença, o que implica atingir um valor mínimo de vendas por ano: o equivalente a 12 salários mínimos para quem pesca com embarcação e seis ordenados mínimos para quem pesca apeado. Isto porque há diferentes formas de trabalhar na lagoa. Há quem se desloque em pequenas embarcações, há quem trabalhe apeado e use ancinho, alguns mergulham e utilizam faca de mariscar, outros recorrem a redes e a galrichos (pequenas armadilhas para capturar enguias).
Não há propriamente uma época específica para recolher os bivalves. Podem ser capturados todo o ano, consoante o Instituto Português do Mar e da Atmosfera o permita ou interdite, com base nas suas análises regulares. “Recentemente, em Fevereiro, Março, Abril e Maio, tudo esteve proibido, à excepção do lingueirão e do mexilhão”, exemplifica Sérgio. Agora, a proibição da captura já recai sobre o berbigão e a ameijoa-boa, que é a espécie que mais rentabilidade tem, prossegue o presidente.
No entanto, existe um limite máximo de captura diária (80 quilos no caso do berbigão e 20 quilos no caso das amêijoas), salienta Sérgio. Tal como nos outros produtos, também este mercado se rege pela lei da oferta e da procura. Presentemente, os mariscadores vendem à indústria depuradora a ameijoa -japónica a 8 euros/quilo, ameijoa -macha entre 8 e 9 euros/quilo, bergigão a 2 euros/quilo e enguia entre 17 a 20 euros/quilo. O preço é depois incrementado até chegar aos supermercados e restaurantes portugueses e espanhóis.
Faltam condições de trabalho e fiscalização
A lei determina que todos os bivalves capturados sejam encaminhados para a indústria depuradora, que é responsável por libertar o marisco de todas as toxinas e impurezas que contenha. No entanto, lamenta o presidente desta associação, há quem capture sem licença para mariscar e confeccione bivalves para si e os venda a terceiros sem os depurar.
É necessário reforçar a informação e a fiscalização sobre esta concorrência que não é legal e que oferece risco para a saúde pública, frisa Sérgio.
Não é apenas a concorrência desleal que afecta este negócio. As condições de trabalho, que “são hoje piores do que há 30 anos” também têm forte impacto. Por falta de uma lota no local, o marisco tem de ser entregue a empresas depuradoras que ficam a 20 ou 30 quilómetros de distância. E também as enguias têm de ser levadas até à lota de Peniche, a cerca de 50 quilómetros da Lagoa de Óbidos, repara o dirigente associativo.
“Há 30 anos, existiam casinhas onde os trabalhadores podiam guardar os seus materiais, hoje não têm nada. Nem onde trocar de roupa”, sublinha Sérgio. A associação já apresentou várias vezes um projecto que desenvolveu para o local, que contempla não só uma área destinada aos pescadores e mariscadores, aos seus materiais e embarcações, como uma zona dedicada aos turistas, com restaurante e cais para barcos de recreio. Projecto que a Agência Portuguesa para o Ambiente (APA) considerou “interessante”, mas que a mudança sucessiva de ministros não tem permitido avançar, contextualiza o presidente, que não desiste da ideia.
“Esta é uma tradição que mexe muito com a nossa economia. Por ano, e só contando com os dados oficiais, factura-se mais de um milhão de euros”, repara Sérgio, para quem agregar turismo seria uma mais-valia. O presidente da associação também alerta para a necessidade de uma intervenção urgente naquele ecossistema, que está ameaçado pelo assoreamento e proliferação de limos, que condicionam a apanha de bivalves.
A preocupação do presidente, partilhada pelos mariscadores, está relacionada com “um enorme desenvolvimento de limos que tem vindo a acontecer nos últimos anos, cuja causa pode estar na oxigenação insuficiente da água, devido ao assoreamento de grande parte do corpo da lagoa”.
Do seu ponto de vista, a APA tem de trabalhar regularmente no desassoreamento, já que o vento e o mar deslocam constantemente areia para a lagoa. Deve ainda rebaixar uma das zonas de areia, o que levará ao aumento da área de captura do marisco.